O plano de reestruturação do Banif começou a ser negociado em Bruxelas no início de 2013 depois da DG Comp (direção-geral da Concorrência) ter aprovado, de forma preliminar, a recapitalização pública do banco.

Mais de dois anos e meio depois e oito planos, ou versões de planos na versão da gestão do Banif , ainda não havia acordo sobre as medida de reestruturação a aplicar e em agosto do ano passado, a DG Com anuncia a abertura de uma investigação aprofundada às ajudas de 1.100 milhões de euros, concedidas pelo Estado português.

Maria Luís Albuquerque sublinhou esta quarta-feira que se é verdade que o plano nunca foi aprovado, também nunca foi recusado. E realçou que a DG Comp poderia ter inviabilizado a ajuda pública logo em 2013. Mas não o fez. A ex-ministra das Finanças reconheceu contudo, na audição na comissão parlamentar de inquérito ao Banif, que a negociação da reestruturação foi sempre mais difícil que a dos outros bancos e que ceticismo do outro lado era muito maior.

Ao longo deste período, realizaram-se cerca de 200 reuniões. Houve avanços e recuos na negociação do famoso commitment catalogue (várias vezes referido pelos antigos gestores do Banif), um catálogo que procurava estabelecer as condições que devia seguir o plano de reestruturação do banco. E mesmo quando a parte portuguesa, Ministério das Finanças, banco e Banco de Portugal, confiavam que tinham ultrapassado um obstáculo, como a famosa tese de reduzir o Banif a banco das ilhas, a imposição voltava como aconteceu em 2014.

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Maria Luís atribuiu esta viragem ao comportamento típico de uma administração pública, em Lisboa ou em Bruxelas, perante a chegada de um novo chefe, neste caso a comissária europeia Margrethe Vestager. Assuntos que já estavam arrumados voltam a ser colocados em cima da mesa pelos serviços técnicos.

Mas afinal quais eram os problemas para a direção geral da concorrência? Em julho de 2013, em anexo a uma carta enviada pelo comissário da Concorrência, Joaquín Almunia, segue uma lista descrita como “não exaustiva” das principais falhas detetadas no plano que tinha sido recebido no dia 29 de junho, quase seis meses depois do arranque das negociações.

  1. A futura rentabilidade do banco não estava sustentada, não havia uma clara separação dos números fundamentais. Os serviços queixavam-se da ausência de uma distinção entre os volumes de crédito existentes e as suas margens e os novos volumes de crédito e respetivas margens. Notavam ainda que uma parte substancial dos lucros previstos resultava de mais-valias com a dívida pública portuguesa.
  2. Quais as razões por trás das dificuldades do Banif. Bruxelas destacava que a performance do banco era pior do que a dos concorrentes, em particular ao nível das imparidades de crédito. Considerava por isso que a crise económica, invocada pela gestão do Banif, não era argumento suficiente, leitura que foi aliás confirmada pelo administrador do Estado no banco entre 20123 e 2014. António Varela descreveu um banco mau, muito mau a nível da gestão, com descontrolo no crédito concedido, exposição concentrada no imobiliário e em poucos clientes. Sublinhou contudo a excelente equipa comercial e fidelidade dos clientes. Para os técnicos europeus, o plano de reestruturação deveria focar mais nos problemas internos, nomeadamente de gestão de risco e critérios de concessão de crédito.
  3. A estratégia comercial para o futuro ainda ainda estava em elaboração. A falta de finalização e sustentação desta estratégia colocava em sérias dúvidas a credibilidade e a solidez de todo o plano de reestruturação, bem como as condições da sua implementação com sucesso.
  4. Implementação e consistência da nova estratégia. O plano proposto tinha pouco detalhe sobre como seria implementada a nova estratégia. Faltavam números fundamentais sobre os ativos imobiliários que seriam objeto de desinvestimento.
  5. Cobertura geográfica em Portugal. Foi desde o início um dos principais braços-de-ferro entre o Banif e a DG Comp cujo ponto de partida era claro: o Banif deve estar focado nas ilhas e na comunidade emigrante, mantendo apenas uma presença muito seletiva em Portugal continental. Estas operações representavam 40% da atividade do grupo e seriam autosustentáveis. Mas o banco concluiu entretanto que precisava da atividade no mercado continental para manter uma dimensão que lhe permitisse reembolsar a ajuda pública e propôs apenas abandonar quatro regiões. Bruxelas insiste que é preciso mais.
  6. Separação das atividades core (estratégicas) e não core. Os serviços queixavam-se de que os critérios dessa separação não eram claros, o que dificultava a sua monitorização. Bruxelas já insistia na divisão do banco em dois, a operação comercial saudável, e uma espécie de banco mau, batizado de Legacy Bank (herança), que receberia os ativos de maior risco e com mais imparidades (imobiliário, crédito e operações a desinvestir).
  7. Desinvestimento nas operações não estratégicas através de venda ou descontinuação. O plano previa a alienação das operações em Malta, Brasil e Cabo Verde, mas não referia o impacto desses negócios na atividade (sabemos que o Banif teve de reconhecer perdas elevadas no banco do Brasil), nem o que aconteceria se não fosse possível concretizar a venda.
  8. Um vínculo claro entre os compromissos e o plano de reestruturação para permitir a sua monitorização. Os serviços insistiam que os compromissos assumidos deveriam ser passíveis de serem vigiados e que deveriam estar refletidos no plano de reestruturação.
  9. Sistemas de informação e apoio à gestão precários. Dos contactos desenvolvidos, a DG Comp concluiu que o Banif não tinha os necessários sistemas de informação e instrumentos de apoio à administração. Uma das fragilidades identificadas prendia-se com a gestão do risco dos clientes. A constatação destas falhas técnicas irritou mesmo os serviços europeus quando numa das oito versões do plano entregues foram detetados vários erros. Este problema só terá sido ultrapassado já em 2015.
  10. O nível de resistência dos depósitos. Os serviços de Bruxelas tinham dúvidas sobre a capacidade de resistência dos depósitos do banco ao corte na remuneração (juros) oferecida aos clientes, por imposição regulatória, mas também por restrições do plano de reestruturação. E pediam mais informação sobre o impacto das medidas na evolução dos depósitos. O Banif teve problemas de liquidez em 2012 antes da recapitalização pública.
  11. Metas chave (rácios de transformação entre crédito e depósitos e rácio de custos sobre receitas). A DG Comp alertava que a meta de 120% do rácio de depósitos sobre crédito, imposta à banca portuguesa, até 2017 não seria alcançada ao nível de todo o grupo, mas apenas na área do retalho.
  12. Ausência dos resultado dos testes de stress e as respostas para eventuais necessidades de capital. Os serviços da concorrência reconheciam que estes testes à resistência do balanço dos bancos ainda estavam a decorrer, mas defendiam que o plano de reestruturação deviam incorporar estes impactos.
  13. O impacto da descida do rating da Moody’s. A DG Comp exigia que o plano de reestruturação incorporasse os efeitos desta revisão da nota da dívida e as implicações nas condições do financiamento ao Banif.
  14. A dívida pública (obrigações do tesouro) que estava no balanço do banco e o cumprimento dos limites de exposição, no quadro da gestão de risco. Os técnicos pediam mais informação sobre a exposição do grupo à dívida do Estado, na altura estimava em 2.900 milhões de euros.
  15. Teto à nova produção bancária. O plano apresentado não refletia as implicações dos limites à expansão da atividade definidos no commitment catalogue (catálogo de compromissos).
  16. Crescimento da quota de mercado. A proposta entregue sugeria que o Banif ia conseguir aumentar a sua quota de mercado (até 50% em segmentos chave), mas não explica como pretende alcançar esse crescimento e que oferta diferenciada irá apresentar para obter. Os técnicos pediam um plano mais específico e credível nesse aspeto.
  17. Definição de quotas de mercado. O plano não era claro quanto aos critérios usados para definir as quotas de mercado, em particular nas comunidades portuguesas da Venezuela, Estados Unidos, África do Sul.
  18. Subsidiárias em zonas offshore. A proposta referia a existência de operações nas ilhas Cayman e nas Bahamas, mas não especificava o que irá acontecer a essas entidades e se deviam permanecer operacionais. Bruxelas alertava para o risco reputacional da presença em tal geografias.
  19. Aumento recente de capital. Bruxelas queria saber mais sobre a tranche de 100 milhões de euros subscrita pelos maiores acionistas privados, a Rentipar e a Autoindustrial, no verão de 2013. Este reforço fazia parte da tranche de investimento privado do plano de recapitalização aprovado que só parcialmente concretizada.
  20. Remuneração da ajuda do Estado. Este tem sido um dos focos da comissão de inquérito. O plano previa apenas o reembolso dos instrumentos de dívida subscritos pelo Estado (os Cocos), mas segundo Bruxelas não abordava a questão de como e quando os juros seriam liquidados. Estas obrigações davam um juro de 10% ao ano. Foi também exigida uma avaliação da possibilidade do Estado converter estas obrigações em capital com direitos de voto e como seria toda a ajuda pública reembolsada e remunerada.
  21. Posição de capital em 2017. O plano previa uma melhoria do capital próprio de 137 milhões de euros em 2017, face a 2016, graças a resultados positivos e à inclusão do Banif Mais (unidade de crédito ao consumo), mas esses efeitos não estavam suficientemente explicados, segundo os serviços de Bruxelas.

Para além destas falhas, os serviços da DG Comp identificam ainda, em anexo, seis temas que faltavam na documentação enviada:

  • Reajustamento do plano de negócios na ausência de medidas.
  • Adoção de mudanças impostas pelo ambiente regulatório.
  • Impacto de cada medida (planeada para restaurar a viabilidade e limitar distorções na concorrência) no balanço e resultados do Banif.
  • Discrição dos incentivos à saída do Estado.
  • Os pressupostos assumidos nos testes de stress em curso para o pior cenário possível.

A surpresa de Maria Luís perante tantas falhas

Em resposta, Maria Luís Albuquerque, acabada de chegar ao lugar de ministra, sublinha que os comentários à credibilidade, coerência e substância do plano nesta fase, constituem uma “surpresa”, dado o diálogo “intenso, aberto e construtivo” entre o Banif e as equipas europeias nos últimos meses. Acrescenta ainda que algum progresso tinha sido feito entretanto e responde com clarificação para cinco dos pontos levantados.

Um dos temas diz respeito à dimensão do futuro Banif em que é sublinhada existência de um “acordo verbal” com data de abril que previa o abandono das operações em sete distritos do continente (em vez dos quatro referidos na lista).

Algumas destas divergências e faltas foram sendo ultrapassadas, mas no essencial o impasse negocial manteve-se até à abertura da investigação aprofundada à ajuda de Estado em agosto de 2015, que foi o prelúdio para o fim do Banif.