Porque é que algumas pessoas são mais felizes do que outras? Ninguém o saberá ao certo, mas Norman Li, da Universidade de Gestão de Singapura, e Satoshi Kanazawa, da Faculdade de Economia e Ciência Política de Londres (Reino Unido), pegaram na teoria da felicidade da savana (the savanna theory of happiness) para mostrar que as pessoas menos inteligentes são mais felizes se viverem no campo e que os mais inteligentes não precisam tanto de amigos. Mas talvez tenham puxado demais pelos resultados obtidos. Sem falar que Kanazawa não se priva de uma boa polémica.

Psicologia positiva

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Aborda as potencialidades dos indivíduos, focando-se sobre temas como emoções positivas, traços positivos da personalidade, relacionamentos positivos ou instituições positivas.

A teoria que os investigadores apresentaram na revista científica British Journal of Psychology (BJP) pretende relacionar a psicologia positiva com a psicologia evolutiva (em que se usam os princípios da evolução em biologia para explicar os processos psicológicos), extrapolando o Princípio da Savana para a situação específica da felicidade. Bem, na verdade, os investigadores analisaram a satisfação com a vida, mas acabaram por extrapolar os resultados para a felicidade geral dos indivíduos.

Segundo o Princípio da Savana, o cérebro humano evolui mediante as condições em que vivam os nossos antepassados na savana africana, durante a época do Pleistoceno (que começou há cerca de 2,5 milhões de anos), e como tal terá dificuldade em tomar decisões em situações que sejam diferentes dessas condições ancestrais. Desta forma, os defensores desta teoria parecem basear-se unicamente nas características que são determinadas geneticamente sem ter em conta a influência que a educação ou o contexto cultural têm no desenvolvimento do indivíduo, incluindo do seu cérebro. Bom, a teoria da savana deixa alguma margem para os mais inteligentes, que são capazes de se adaptar a uma vida fora da savana.

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O que Norman Li e Satoshi Kanazawa sugerem é que os constrangimentos à evolução do cérebro impostos pelo Princípio da Savana são mais fortes entre indivíduos menos inteligentes. “Os indivíduos mais inteligentes, que têm níveis mais altos de inteligência geral e, portanto, maior habilidade para solucionar novos problemas em termos evolutivos, podem ter menos dificuldade em compreender e lidar com entidades e situações evolutivamente novas”, escrevem os autores no artigo. Mas, embora se refiram à inteligência geral, os investigadores só analisaram, de facto, a inteligência verbal.

Ao aplicarem o Princípio da Savana ao nível de satisfação com a vida, os investigadores sugerem que o que nos trazia satisfação na nossa vida de homem primitivo ainda é o que nos dá mais satisfação hoje em dia (o mesmo para o que nos dá menos satisfação). “A teoria da savana sugere que esses efeitos das consequências ancestrais na satisfação atual com a vida serão mais fortes entre indivíduos menos inteligentes do que entre indivíduos mais inteligentes”, referem os autores. Ou seja, segundo os investigadores, seremos mais felizes a viver em ambientes rurais com densidades populacionais menores.

“De um ponto de vista evolutivo, os nossos antepassados que mantinham contactos frequentes com amigos tinham uma maior probabilidade de sobreviverem e de se reproduzirem. Deste modo, as interações sociais representam uma vantagem evolutiva, que deveria conduzir à felicidade e bem-estar”, diz ao Observador Joana Arantes, investigadora no Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho.

A investigadora lembra que as condições sociais a que estavam sujeitos o homem primitivo, vivendo em grupos de cerca de 150 indivíduos, pouco ou nada tem a ver com as condições atuais. “Atualmente, vemos por dia centenas de pessoas, o número médio de amigos no Facebook é aproximadamente 350, e quer por motivos pessoais, quer por motivos profissionais contactamos periodicamente com um número muito elevado de pessoas.”

Este confronto entre as áreas urbanas com uma elevada densidade populacional e as áreas rurais com grupos mais pequenos, justificam, para os investigadores, a perceção da felicidade consoante o coeficiente de inteligência. As pessoas menos inteligentes estão melhor em meios rurais, mais parecidos com o nosso ambiente ancestral, porque terão, segundo os defensores desta teoria, menos facilidade em adaptar-se a novas condições, como os aglomerados de pessoas as grandes cidades. Nestes casos, as interações sociais podem tornar mais feliz a vida das pessoas menos inteligentes, mas não será obrigatoriamente o caso nas pessoas mais inteligentes.

Mas será que as pessoas menos inteligentes são mais felizes no campo porque não se conseguem adaptar à cidade ou não vivem na cidade porque são mais felizes? Será que as pessoas são mais felizes porque vivem em aglomerados mais pequenos ou as pessoas escolhem viver em aglomerados mais pequenos porque são mais felizes? Dois acontecimentos estarem correlacionados estatisticamente, não significa que sejam causa e consequência um do outro, lembra ao Observador João Daniel, investigador na Unidade de Investigação em Psicologia do ISPA – Instituto Universitário. E esse é um dos pontos que o artigo da BJP falha em explicar.

“Os resultados até podem ser interessantes, mas em termos teóricos ficam um bocado aquém. A discussão não é muito forte na contextualização teórica dos resultados e conclusões obtidos”, refere João Daniel, biólogo e doutorado em psicologia.

Os dois autores do artigo avaliaram a frequência das interações sociais de mais de 15 mil indivíduos, entre os 18 e os 28 anos, nos Estados Unidos. Mas para Joana Arantes “mais importante do que a frequência das interações sociais com amigos é a qualidade dessas mesmas interações”. Além disso, a investigadora refere que “Li e Kanazawa questionaram apenas acerca da frequência das interações com os amigos, não especificando o que consideravam como amigos, nem analisado nenhum aspeto dessas interações”.

Contactada pelo The Washington Post, Carol Graham, investigadora em economia da felicidade na Instituição Brookings (Washington), refere outra das lacunas do estudo: a felicidade é definida como a perceção de satisfação com a vida, mas não considera questões de bem-estar, como o número de vezes em que o indivíduo se riu ou que se sentiu zangado. Sobre isto, os investigadores desvalorizam: “A teoria da felicidade da savana não está comprometida com nenhuma definição em particular e é compatível com qualquer conceção razoável de felicidade, bem-estar subjetivo e satisfação”.

Com os dados recolhidos, Li e Kanazawa concluíram que, “tal como previsto pela teoria da felicidade da savana, a associação entre a socialização com os amigos e a satisfação com a vida foi mais forte entre pessoas menos inteligentes do que entre pessoas mais inteligentes”. Joana Arantes acrescenta que a investigação na área da inteligência emocional tem mostrado que “as pessoas muito inteligentes podem precisar de interações menos frequentes, mas com maior qualidade do que as restantes pessoas”. Ou porque se adaptam mais facilmente a novos ambientes, ou porque “as atividades sociais acabam por ser desvalorizadas em detrimento dos seus interesses e objetivos principais”.

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João Daniel refere, porém, que estas “conclusões são exageradas”. Os autores são muito “hábeis na maneira como contam a história”. Com uma amostra de 15 mil pessoas – que o investigador refere como um ponto positivo – é fácil que mesmo as diferenças mais pequenas se tornem estatisticamente significativas, mas isso não quer dizer que a magnitude destas diferenças seja relevante. E chama a atenção para os gráficos, onde as diferenças são inferiores a 0,05. A diferença parece grande porque o gráfico não começa no início da escala, que vai de um a cinco (as conclusões não podem dizer mais do que os resultados, como já o tínhamos referido aqui).

Assim, e como refere El Huffington Post, esta teoria da savana não é mais que isso mesmo, uma teoria. Não vale a pena abdicar já dos amigos. “A teoria da felicidade da savana é uma teoria das ciências fundamentais, iguais a todo o meu trabalho”, diz Satoshi Kanazawa. “Os cientistas fundamentais, como eu, só tentam explicar a natureza.”

Mas Kanazawa não tem sido absolutamente consensual nesta tentativa. Um artigo publicado no blogue Psychology Today, em 2011, foi alvo de muitas críticas, não só por haver um certo racismo implícito no título – “Porque é que as mulheres negras são fisicamente menos atrativas que outras mulheres?” -, mas porque todo o texto era baseado em má ciência, refere um texto de opinião no The Guardian. Já em 2006, o investigador tinha publicado um artigo científico em que afirmava que os povos africanos eram mais pobres e mais afetados por doenças por serem menos inteligentes. Um dos blogues da conceituada revista Scientific American levanta mais questões sobre a integridade do investigador.

“Se a verdade ofende as pessoas, é o nosso papel como cientistas ofendê-las. Se o que eu digo está errado (porque não tem lógica ou porque carece de evidência científica credível), então o problema é meu. Se o que eu digo vos ofende, então o problema é vosso. Preparem-se para serem ofendidos. Faço ciência como se a verdade fosse importante e como se os vossos sentimentos sobre isso não”, escreve Satoshi Kanazawa na página da universidade.