A moda dos reboots (recomeço) que tem assolado o mercado cinematográfico tem vindo a contagiar outras manifestações artísticas e os videojogos, pelas semelhanças de linguagem, acabaram rapidamente por ceder a esta tendência. Grande parte dos reboots soam apressados, injustificados, deixando o público a questionar-se o porquê de tal decisão, especialmente quando as obras a serem refeitas parecem artisticamente intocáveis com o passar dos anos e, pouco mais são do que justificações das editoras e produtoras para amealhar dinheiro relativamente fácil à custa da base de apoio dessas séries. Por outro lado a ideia de que um novo começo, com uma nova perspetiva, possa resultar é algo plausível e que por vezes funciona. Foi esse o caso da série de jogos familiar Ratchet & Clank.

Ratchet & Clank: o reboot

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14 anos não é assim tanto tempo. Ou talvez seja se pensarmos na juventude de um mercado como o dos videojogos, e até já vimos acontecerem reboots com um menor intervalo temporal. Mas onde é que residia o desconforto com o anúncio deste jogo exclusivo da PS4 na E3 de 2014? Na ligação com o filme que contaria, no grande ecrã, a mesma história do jogo lançado quase em simultâneo.

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Há um certa toxicidade histórica de videojogos adaptados a filme e vice-versa, como se a frequência com que os resultados que roçaram o “terrível” demarcassem a priori esta união entre as duas artes como um nado-morto. Era fácil de assumir que após 14 anos e 11 jogos, sequelas e spin-offs de sucesso crítico e comercial, o reboot fosse apenas uma forma de “encavalitar” o lançamento do jogo como apoio mediático para a incursão de Ratchet & Clank no cinema. O que provavelmente até deve ser verdade. Portanto, este novo título é, trocando por miúdos, a adaptação a jogo da re-imaginação em filme do primeiro jogo da série. Uma lógica difícil de explicar, e tanto quanto me lembro, inédita.

A mediania do filme

Apesar da estreia do filme estar marcada apenas para o próximo mês, já assistimos à antestreia de Ratchet & Clank (o filme) na semana em que foi lançado Ratchet & Clank (o jogo). A primeira surpresa com este filme é mesmo o facto de não ser “terrível”, quebrando com uma sequência de maus filmes baseados em jogos. Mas por outro lado, também não é excelente, e visto que a história do cinema de animação sempre nos ensinou que é possível complicar o enredo de um filme, mesmo que o seu público-alvo seja maioritariamente infantil, deixou-nos a sensação de que falta alguma coisa.

É portanto um filme mediano, porque o ritmo da história está excessivamente focado num ponto único do enredo de Ratchet & Clank, que foi infinitamente melhor explorado no jogo do que no filme. Mas por outro lado, cumpre o seu objetivo, o de ser uma espécie de “filme de domingo à tarde” para toda a família e que diverte moderadamente durante quase toda a sua duração. Especialmente num ano em Zootopia, The Little Prince e Kung Fu Panda 3 já foram exibidos, e em que alguns pesos pesados da animação ainda estão para chegar (como o muito aguardado Finding Dory), Ratchet & Clank (o filme) vai divertir mas servirá, acima tudo, de aperitivo para o brilhante prato principal trazido com este reboot: o jogo.

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A excelência do jogo

Quando escrevemos a antevisão do jogo há um mês, ficámos com duas sensações muito fortes: a primeira era a fidelidade com que o estúdio Insomniac Games estava a reproduzir o jogo original, quase plano por plano, trazendo-o para uma lógica contemporânea visualmente surpreendente, mas com jogabilidade facilitada, e também a tremenda linguagem cinematográfica que o jogo possui.

Quando pudemos jogar a versão final do jogo essas sensações confirmaram-se e percebi (depois de ver o filme), que o aproveitamento do enredo era realmente muito superior no jogo, comparativamente com o cinema. Aqui há um maior desenvolvimento da espinha dorsal da história, em que seguimos o caminho de dois improváveis heróis, Ratchet, o mecânico lombax e Clank, o pequeno autómato defeituoso que conseguem entrar para o restrito grupo de guardiões galácticos e, juntos, derrotar uma mega corporação/império “do mal” que assola a galáxia. Todas as histórias paralelas em torno desta aventura, assim como o elenco, parecem ganhar outras dimensões que não se encontram no filme, em que tudo parece passar a correr.

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Tanto o estúdio que desenvolveu o jogo como o estúdio Rainmaker Entertainment (responsável pelo filme) trabalharam em sincronia e partilharam os modelos dos personagens e sequências audiovisuais. Esses excertos são perfeitamente percetíveis no jogo, e demarcam a proximidade do ritmo narrativo entre um e outro.

Será este todo o potencial da PS4?

Após muitas e muitas horas mergulhado na galáxia de Solana (onde decorre a história), podemos afirmar que este é, possivelmente (pelo menos até ao lançamento de Uncharted 4), o jogo visualmente mais surpreendente da consola atual da Sony. O nível de detalhe de cada planeta, os pormenores de profundidade de campo dos planos, as texturas de um realismo surpreendente denotam que até entre a comparação videojogo/filme, o jogo fica a ganhar. Há um polimento visual em cada pormenor das quase vinte horas de jogo de Ratchet & Clank que nos deixam muitas vezes boquiabertos a ver tudo aquilo que se passa à nossa volta. E tudo isto num jogo destinado a um público a partir dos sete anos de idade, familiar, e que é possivelmente um dos melhores jogos de ação da história dos videojogos.

Também é irónico que o jogo originalmente tenha sido criado em 2002, na senda de trazer para o mercado blockbuster familiar a linguagem de sucesso da Pixar e da Dreamworks, e que isso seja definitivamente sentido em 2016. Mas sente-se, acima de tudo, que o jogo da PS4 tem uma cinematografia que ultrapassa de longe o filme, que apenas aspira a ser algo que o videojogo é: uma brilhante peça de cinema de animação.

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É com surpresa que vejo um reboot chegar a este nível de excelência, tornando-se uma das três melhores razões para se possuir uma PlayStation 4 e, sem sombra de dúvida, a maior razão que poderá juntar toda a família em torno da consola e da TV, a explorar uma das aventuras infantis mais épicas e mais complexas, onde as sequências frenéticas de ação trazem para a sala de estar o que de melhor a tecnologia e o talento atuais conseguem fazer com personagens de animação adaptados a videojogo. E vice-versa.

Ricardo Correia, Rubber Chicken