António Costa começou o debate quinzenal desta quinta-feira a invocar um “papão” do passado — a tradicional herança dos Governos anteriores — e acabou o a falar de “papões” do presente e do futuro: “O papão pode atormentar histórias de embalar, mas não atormenta um país onde a cada profecia da oposição é desmentida”. O primeiro-ministro fechou a sua performance parlamentar a desejar aos deputados da direita que, ao longo dos próximos “quinze dias, não tenham sonhos tão atormentados com papões que a realidade insiste em desmentir”. Ao longo das duas horas de debate, houve não só “papões”, mas também papéis escondidos, documentos revelados, uma promessa de recuperar contribuições, e a resignação de que o Novo Banco pode vir a ser pago pelos contribuintes.

“Ao contrário do que a anterior maioria nos quis fazer crer, a melhoria da situação económica em 2015 não era real”, começou António Costa, citando dados económicos do segundo semestre de 2015. Na ressaca do debate sobre o Programa de Estabilidade de ontem — quarta-feira — Costa quis voltar a enfatizar que o exercício do Governo é “realista” e “realizado com um grau significativo de prudência”. Não convenceu o PSD.

Perante o fantasma do passado invocado contra o seu Governo, Pedro Passos Coelho manteve-se sentado na bancada do PSD, mudo, quedo e calado. É o segundo debate quinzenal consecutivo em que o líder social-democrata não intervém. Luís Montenegro, presidente da bancada laranja, quis saber se o resultado económico era “aparente”, então “porque não mudou o cenário para 2016?” Costa respondeu que com a aplicação das novas medidas de reversão da austeridade “tem havido uma melhoria do clima económico”.

Montenegro voltou a explorar as contradições do Programa de Estabilidade que a ex-ministra Maria Luís Albuquerque tinha evidenciado no dia anterior: “Como vão compaginar o anúncio da redução de funcionários públicos com o anúncio que fizeram da contratação massiva de professores ou enfermeiros?”, questionou o social-democrata. Não teve esclarecimento. António Costa vinha preparado com outra resposta à espera de uma determinada pergunta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E a pergunta aconteceu: o mistério do “anexo secreto” ao Programa de Estabilidade, noticiado pelo jornal i, enviado para Bruxelas. O PSD colocou a dúvida: era esse anexo secreto o “pano de contingência que o ministro das Finanças disse em entrevista que estava a ser preparado?”

António Costa levava o documento desconhecido na mão e mandou entregar uma folha A3 aos parlamentares, com a tabela. “Não há um documento secreto nem um quadro secreto. É um documento de trabalho que foi enviado à UTAO, à CFP e à UE. Viria a verificar-se que, nesse anexo, o Governo promete cortar mais dois mil milhões de euros ao défice até 2020, mas que as despesas com pessoal voltam a aumentar mesmo com a saída de mais funcionários públicos, como avançou o Observador. Isso, porém, não foi debatido no plenário. Nem que o Executivo planeia cortar “mais 150 milhões nos apoios sociais”, como noticiou o Diário de Notícias. Ou que os impostos indiretos aumentam 210 milhões, segundo o Público. Todas as estas informações foram dadas minutos depois de o debate terminar.

Perante um cenário potencial de notícias sobre estas — sobre temas que nem foram falados durante o debate do Programa de Estabilidade — Costa deu apenas um número positivo: 100 milhões de euros de receita adicional no combate à fraude contributiva. No final da sessão, o primeiro-ministro repetiria: “Este programa não é um plano de contingência. Não é secreto nem escondido”.

Costa para a direita: “A vocês incomoda que a ‘geringonça’ funcione”

À esquerda, o Bloco levou para o debate a questão dos offshore, dando sequência a um conjunto de nove medidas que tinha apresentado no dia anterior para acabar com esta realidade. “É um combate em que o BE não está sozinho”, respondeu António Costa a Catarina Martins, que acrescentou: “Podemos ir mais longe”. E foi mais longe, ao recuperar a questão da venda do Novo Banco. A coordenadora do Bloco pediu garantias de que o Novo Banco não seria vendido com prejuízo.

António Costa não lhe deu essas garantias e deixou todas as possibilidades em aberto. “Temos de fazer tudo o que está ao nosso alcance, para a solução ser a que terá menos custos. Mas não fecho porta nenhuma.” E acrescentou: “Só me comprometo: não defenderei nunca o que não for a melhor solução para os contribuintes“. A mais barata, mas não a de custo zero.

Ao CDS, Costa negou tudo. Mais uma vez. Não ia aumentar impostos, como o IVA, o IRS ou o IRC. Perante a insistência de Assunção Cristas, atacou: “Percebo que queira retomar tradição do partido dos contribuintes, mas depois de [o seu Governo] ter sido o campeão dos aumento impostos, devia ter pudor”. A líder do CDS voltava à carga com um eventual regresso imposto sucessório, dizendo que caso este avançasse estava contra. E foi então que o primeiro-ministro usou da máxima criatividade nas palavras. “A senhora deputada ‘hipotiza‘”, ironizou o PM. “Quer discutir medidas hipotéticas que não tomámos para se colocar como oposição. Voltemos ao real e deixemos as hipóteses”.

Jerónimo de Sousa leu a intervenção, falou de “amarramentos” à política europeia que “condicionam severamente o nosso desenvolvimento e que estão patentes no Programa de Estabilidade e no Programa Nacional de Reformas”. Apesar de se manifestar contra o conteúdo dos documentos apresentados pelo Governo no dia anterior, o secretário-geral comunista também afirmou que não alinhará no “caminho do retrocesso” para as políticas do PSD e do CDS. Está dada a garantia de que o PCP votará esta sexta-feira contra o projeto do CDS para rejeitar o Programa de Estabilidade.

“É ‘geringonça’ mas funciona”, diria António Costa num apontamento de humor a meio do debate. “A nós não nos incomoda nada que seja ‘geringonça’, mas a vocês” — e apontava para a direita — “incomoda muito que funcione”. Vai funcionando.