Até agora, havia apenas um caso no cinema português de um filme que foi terminado após a morte do seu realizador. Manuel Guimarães, falecido em janeiro de 1975, não conseguiu acabar as filmagens de “Cântico Final”, adaptado do romance de Vergílio Ferreira. A fita seria concluída pelo seu filho, o poeta, crítico de cinema e também realizador Dórdio Guimarães, marido de Natália Correia. “Axilas”, de José Fonseca e Costa, junta-se agora a “Cântico Final”. O autor de “Kilas, o Mau da Fita”, que não realizava uma longa-metragem de ficção desde 2006, quando estreou “Viúva Rica Solteira não Fica”, morreu em novembro de 2015, deixando dois terços de “Axilas” filmado. Coube ao montador, Paulo Milhomens, rodar a cerca de meia hora restante e montar o que faltava, já que muito deste trabalho técnico estava já feito ou ajustado.

[Veja um programa da RTP sobre Fonseca e Costa]

https://youtu.be/sHAn1GnwyRQ

“Axilas” é uma adaptação livre do conto homónimo do escritor brasileiro Rubem Fonseca (que é filho de emigrantes portugueses, aliás), trabalhado por Fonseca e Costa e pelo argumentista, humorista e dramaturgo Mário Botequilha. Um dos filmes anteriores do realizador, “O Fascínio” (2003), já tinha como fonte uma obra de outro autor brasileiro, Tabajara Ruas. Percebe-se que Fonseca e Costa tenha empatizado com o humor espessamente negro e violento de Rubem Fonseca, com o seu erotismo escancarado e a sua escrita limpa de floreados estilísticos, rápida, certeira e muito cinematográfica. É um universo que de alguma forma vem ao encontro de uma componente pícara e burlesca que, como notou o meu colega de crítica João Lopes, se manifesta nalguns filmes de Fonseca e Costa, mais obviamente em “Kilas” mas também em “Sem Sombra de Pecado”, por exemplo.

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[Veja o “trailer” de “Axilas”]

Lázaro de Jesus (Pedro Lacerda), um órfão adotado por uma senhora muito rica e beatíssima a quem chama avó, é o anti-herói de “Axilas”. Tratado pela velha senhora quase como se fosse ainda uma criança, Lázaro tem como padrinho o advogado e administrador dos bens da velhota, tipo dado às negociatas e à luxúria, e está destinado a casar com a também muito religiosa Angelina. Enquanto a avó não morre e (pensa ele) lhe deixa tudo, Lázaro compensa as agruras domésticas caseiras andando na má vida com gente chunga. Certa noite, descobre a chave do escritório do avô. E ao vasculhá-lo, descobre que ele era um emérito pornógrafo, com uma tara muito peculiar: a fixação nas axilas femininas. Contaminado, Lázaro cai sob o fascínio das axilas da jovem e bela Maria Pia, violinista da Orquestra Gulbenkian. Como fazer para chegar a esse desejado recesso anatómico?

O conto de Rubem Fonseca tem só meia-dúzia de páginas, ideal uma curta-metragem. Mas “Axilas” é uma longa-metragem, pelo que Fonseca e Costa e Botequilha tiveram que desenhar toda uma realidade envolvente para Lázaro de Jesus, e criar outras personagens para ele se relacionar. A parte menos conseguida de “Axilas” refere-se precisamente ao pequeno mundo da avó e à vida “familiar” de Lázaro. O Portugal catolicão e arcas encoiradas que o filme estigmatiza na figura da avó e no ambiente do solar, qual Titi de “A Relíquia” sobrevivente no século XXI, já praticamente não existe, e muito menos em Lisboa, pelo que a sátira é fácil, grosseira e preguiçosa, o equivalente de gozar com uma nonagenária quadriplégica que reza o terço.

[Veja Rubem Fonseca em Portugal, em 2012]

Quando o filme se atém à letra e ao espírito do conto e bebe inspiração nele, tudo funciona melhor, apesar de haver inverosimilhanças pontuais (nenhuma mulher no seu perfeito juízo voltaria a querer ver um homem que, como Lázaro, lhe tivesse feito o que este fez a Maria Pia no carro). Fonseca e Costa conseguiu reproduzir a ferocidade imperturbável, o humor brutal e a amoralidade desapiedada da história de Rubem Fonseca, tendo em Pedro Lacerda o intérprete ideal, com a sua composição da personagem entre o pamonha e o “creepy”, o inofensivo e o ameaçador. Lacerda está bem acompanhado por Elisa Lisboa, na avó, André Gomes, no padrinho, Margarida Marinho, numa Angelina que se furta a jogos de mão mas sugere gostar de prazeres mais perversos, ou José Raposo, no amigo de Lázaro que rouba dinheiro à tia desbocada e é seu colega de tasca, bagaço e blasfémias (pena que o filme não dê mais tempo de antena a esse lado popular-gutural do enredo). Maria da Rocha, no papel de Maria Pia, é o elo mais débil do elenco, mas passa-se que não é atriz profissional, é mesmo violinista, e também compositora.

Tendo em conta as circunstâncias extraordinárias que rodearam a conclusão da sua rodagem e o posterior trabalho de montagem, é natural que haja em “Axilas” a ocasional lomba narrativa, e algumas imperfeições estruturais. Mas não duvido que José Fonseca e Costa não desse o seu selo de aprovação a este seu filme-testamento, mostrado nos cinemas aos espetadores, como ele queria, em vez de ter ficado incompleto e abandonado num arquivo.