Os seguranças entreolham-se discretamente. Olham para o relógio, estão preocupados mas encolhem os ombros. O embaixador português em Maputo levanta o sobrolho com o mesmo sentimento. A agenda está a derrapar largamente. Marcelo Rebelo de Sousa está dentro da Escola Portuguesa de Moçambique há bastante mais tempo do que o previsto e ainda resolve subir uma escadaria para a sala de Ciência. O embaixador persegue-o. “Senhor Presidente, 40 minutos de atraso”. Mas a resposta não lhe dá hipótese: “40 minutos de atraso, o que é isto nesta vida?”

Marcelo Rebelo de Sousa não tem pressa. Há mais de 1.600 alunos na Escola e, não raras vezes, dá ideia que o Presidente da República quer cumprimentar um por um. Ou tirar uma selfie. É quase sempre ele que propõe “mais uma selfie”. Porquê? Por tudo e por nada. “Ah são os líderes associativos? Então temos de tirar uma fotografia, Vá, uma selfie!”. “É muita selfie!”, ouve-se na comitiva presidencial que mal consegue acompanhar o passo. A diretora da escola portuguesa no país, Dina Trigo de Mira, vai conduzindo Marcelo pelos corredores, mas o Presidente quase não precisa de guia, porque na realidade não há guião. Pelo menos para ele, que vai ao sabor do momento. Mas voltemos ao princípio. Preparado? Cá vai:

[jwplatform fvHzXrtE]

Ele canta, ele dança, estala dedos, apresenta, ele beija, abraça, esmaga, faz de professor, de entretainer, promete, tira notas, é o seu próprio mestre-de-cerimónias e o verdadeiro homem-selfie. Marcelo Rebelo de Sousa é isto tudo. Mas em Moçambique é isto tudo ao mesmo tempo e no espaço de quatro horas. Pouco passava da uma da tarde e a comitiva já tinha tudo isto e em dose-dulpa. Primeiro, na escola portuguesa. Logo a seguir, numa escola secundária (o correspondente aos 8º, 9º e 10º anos) moçambicana no bairro da Mafalala. A diferença entre as duas foi que na primeira, para famílias mais abastadas, houve mais selfies, na segunda houve mais (incontáveis) abraços e beijos, aos pares, na testa, segredos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas já lá vamos. É que foi na Escola Portuguesa que tudo começou. Marcelo vinha tão cheio de afeto para distribuir que esmagou a diretora num abraço mal saiu da porta do carro. Depois, cantou os dois hinos nacionais, juntamente com os alunos da escola perfilados na escadaria com a sua fotografia oficial em pano de fundo.

Foi imparável no contacto, mas também nas provocações em que o alvo preferido é o Governo. Na passagem pela sala de Ciência, viu experiências várias e o enunciar de uma pergunta: “Se o meu amigo tiver um copo completamente cheio de água, parece-lhe possível lançar neste vários objetos sem entornar uma gota?”. “Explica lá isso que eu tenho de explicar isso ao Governo”, diz para um miúdo que faz logo a experiência. Apesar de colocar clips no copo, a água não transborda e Marcelo sonha: “Tenho de levar isso para Lisboa. Mais despesa, mais despesa, mais despesa e o défice não aumenta. Isso é sensacional!”.

PRESIDENTE DA REPUBLICA, Mo?ambique, ASSEMBLEIA, MARCELO REBELO DE SOUSA. ESCOLA PORTUGUESA DE MOÇAMBIQUE EM MAPUTO

Na Escola Portuguesa de Moçambique, o Presidente foi recebido pelos mais de 1600 alunos e pela diretora Dina Trigo de Mira JOÃO RELVAS/LUSA

Entra no bar. “Olá colegas”, atira aos professores. E ouve queixas da “precariedade” dos docentes que se sentem esquecidos. “Nós não nos esquecemos, a União Europeia é que aperta”, justifica o Presidente que logo a seguir atira para a Secretária de Estado da Cooperação que está do seu lado esquerdo. “De olho muito aberto, mas com falta de verba”, comenta Marcelo. Pisca o olho, como quem é cúmplice na marotice e espeta-lhe um beijo na testa. Segundo seguinte: volta-se para trás e passa a cúmplice da queixosa: “É uma líder nata! Muito bem!”. E segue.

De manhã, no Parlamento já tinha dado sinal de alta rotação e espírito afiado. A reunião tinha sido formal, com a presidente da Assembleia da República e os representantes dos três partidos (Frelimo, Renamo e MDM) com assento parlamentar. No final, porém, na troca de presentes, o chefe de Estado recebeu uma estatueta em pau, de um guerrilheiro. Levantou-a em frente aos olhos em sinal de combate: “Vou levar para o meu gabinete e faço assim sempre que me aparecer um diploma do Governo ou da Assembleia da República”. Para a troca levou um prato: “Somos um bocadinho mais pacíficos. Mas se tiver uma sessão parlamentar mais intensa, pode atirá-lo!”.

Minutos depois, entre menos risos, havia de deixar um recado que tem pernas para andar os 9 mil quilómetros que separam o Parlamento Moçambicano, em Maputo, do Palácio de São Bento, em Lisboa: ” Governar os povos não é governar para números, mas para pessoas”.

Mesmo quando os números são fundamentais, quem tem responsabilidades políticas sabe que o que os números têm de garantir é a felicidade das pessoas”.

Voltando à escola portuguesa. Está quase de saída, mas ainda ouve mais uma atuação de alunos, espalhados ao longo da escola para pequenas apresentações. Desta vez canta-se o “Ao fim do mundo”, da Ala dos Namorados. Marcelo Estala os dedos, bate o pé. No fim grita: “Iuuuuiuuuuuu!” E… mais uma selfie. Mais uns passos e já está na rua, pronto para agradecer as palavras da diretora que fala no prémio que os irmãos Rebelo de Sousa instituíram e que se destina ao melhor aluno do 11º ano, que ganha uma bolsa para o ano seguinte. O prémio tem o nome do pai. Marcelo ouve, mas está tão frenético que quando pega no microfone fala aos “meninos e meninas, matulões e matulonas”, mas pouco mais diz do que incitar “Qual a melhor escola do Mundo?”; “Qual a melhor diretora do Mundo?”; “Quais os dois maiores países do Mundo?”

Repetiria a fórmula pouco tempo depois, na escola Estrela Vermelha, na Mafalala. Estavam centenas de alunos a postos para a receção com cânticos, sonoros, ritmados, potentes. Africanos. Marcelo não via o fim da fila (era extensa), mas começou a cumprimentar na ponta. “Espetacular…”, deixa escapar um segurança num tom remediado. É que do outro lado da barreira de jornalistas, Marcelo não via que estavam centenas à espera, a dançar, e a chamar: “Presidente!”

[jwplatform rGO4MP3N]

Não havia nada a fazer, o precedente estava aberto. Marcelo desdobrou-se em cumprimentos, de um lado e do outro do corredor, até à sala de aula ampla, de janelas grandes, ardósia preta a todo o cumprimento da parede. E cheia de alunos com perguntas preparadas. “Levanta-te que eu levo lá o microfone”. E passou assim de convidado para comandante da sessão. Pelo meio vai ensinado: “Com o microfone fala-se como quem come um gelado. Assim”. Aliás, não larga o aparelho: faz de pé de microfone para quem fala, põe braço quase sempre por cima do ombro dos mais tímidos.

Fala da docência no presente: “Sou professor”. E segue a aula sempre no tom pedagógico, mas diz que não há nada a fazer sobre apoio de Portugal a uma escola específica. “As outras escolas matavam-me!”. Vai respondendo sobre o problema do casamento e gravidez precoces, como foi ser jornalista, se sempre sonhou ser Presidente. Dizem que sim, mas : “Eu não me lembro nada dessa ideia maluca”. E como esteve quase para dividir a sua vida entre Portugal e Moçambique. “Sinto-me em casa, por isso é difícil partir de Moçambique”. “As pessoas são muito calorosas. Os portugueses também, mas às vezes são uns chatos. E há outros muito, muito chatos”.

PRESIDENTE DA REPUBLICA, Mo?ambique, ASSEMBLEIA, MARCELO REBELO DE SOUSA,

Numa sessão de pergunta, na escola Estrela Vermelha, na Mafalala. JOÃO RELVAS/LUSA