Há um século nasceu um vagabundo chamado Camilo José Cela. Um vagabundo ao serviço de Espanha, como se intitulou num livro (editado em português pela Asa) e da literatura que recebeu o prémio Nobel da Literatura, em 1989, o Prémio Cervantes, em 1995, e o Prémio Nacional Espanhol de Literatura, em 1984. E que, para receber tamanhas honras, escreveu dezenas de livros — romances, volumes de poesia, de ensaio, de memórias. A justificação do júri do Nobel para o merecimento do elogio universal foi “a riqueza e a intensidade da sua prosa”, que com uma “paixão controlada encarna uma visão provocadora do desamparo de todo o ser humano”.
De acordo, em especial na parte da provocação. Havia provocação em tudo o Cela escrevia – e fazia e dizia. E vivera. Repegando na sua faceta de vagabundo, de viajante que, a escrever sobre territórios distantes, preferiu descrever as suas deambulações pelo chão da sua terra, faça-se uma citação dessa modalidade desafiadora de se apresentar por escrito:
Se o Estado não fosse tão rígido e pouco sentimental; se o Estado fosse mais patriota e sensível, poder-se-ia pedir-lhe que, sem abusar, apalavrasse uns quantos vagabundos que lhe explicassem Espanha, essa coisa que o Estado, em Espanha, historicamente desconhece. Entre estes vagabundos haveria de fazer-se uma excepção: a daquele que isto subscreve; as razões são óbvias”.
Era galego e aristocrata (1.ª Marquês de Iria Flavia). Tanto foi franquista assumido como tremendista, cultor destacado, segundo o cânone, de um movimento literário, surgido nos anos 40 do século passado em Espanha, que apreciava, no romance, a língua solta e crua, as situações violentas, as personagens marginalizadas, um olhar grotesco sobre a vida. Passou pelo curso de medicina, assistiu a aulas de Filosofia, foi informador do regime de Franco (segundo o historiador Pere Ysàs i Solanes, até mesmo nos anos 60, quando se julgava um dissidente), feriu-se durante a Guerra Civil espanhola, tornou-se jornalista. E censor. Censor e, mais tarde, vítima de censura, situação que diz bem das suas fundas contradições. Da confluência na sua personalidade excêntrica da simpatia pelo nacionalismo político e por uma espécie de libertinagem de linguagem – muita dela de travo popular — e de costumes e um gosto pelas vanguardas e pelas experiências. Um espírito anarquista que escreveu que “a fria ordem administrativa dos museus, dos ficheiros, das estatísticas e do cemitério, é uma ordem desumana”. Alguém que, tendo participado com entusiasmo numa guerra, considerou-a mais tarde terrível e desnecessária.
Escreveu poesia, fundou uma importante revista literária em Maiorca, integrou a Real Academia Espanhola mas destacou-se sobretudo pela sua prosa. A Família de Pascual Duarte, romance datado de 1942 e editado em Portugal pelo Círculo de Leitores, é uma incursão pelo mundo rural e popular, feito de vivências agrestes e extremadas. O livro inicia-se com uma “nota do transcritor” na qual se escrevem as seguintes palavras: “A personagem, segundo o meu modo de ver as coisas, e talvez seja essa a única razão por que a trago à luz, é um modelo de comportamento; não um modelo para imitar mas para ouvir; um modelo perante o qual apenas se pode dizer: – Vês o que faz? Pois faz o contrário do que devia”. Filho de pai português, violento contrabandista em Badajoz e de uma mãe alcoólica que “não era lá muito amiga da água”, acaba por sucumbir ao veneno dos seus instintos e aos seus ódios.
No romance seguinte trata da tuberculose sob a forma de uma galeria de monólogos num ambiente de sanatório. Uns anos mais tarde, com Viagem a Alcarria, inicia-se na literatura de viagens, género no qual demonstrou uma capacidade descritiva invulgar, tão certeira como pícara. Depois, já no início dos anos 50, publicou A Colmeia, onde se atreve, no ambiente do pós-guerra em Madrid, a fazer descrições pouco simpáticas de uma sociedade de aparências, nas quais figuram eróticas descrições que o obrigam a ser publicado num exílio editorial argentino. E Mrs. Caldweell Fala com o Seu Filho, no qual põe uma mulher louca a dialogar com um filho que morreu.
Em São Camilo 1936 volta às experiências literárias, arriscando um monólogo em modo fluxo de consciência com fundo autobiográfico em ambiente de bas-fond, no primeiro dia da Guerra Civil espanhola. Mais recentemente, além do romance Cristo Versus Arizona, de 1988, destacam-se os romances passados na Galiza como Mazurca para Dois Mortos, de 1983, e A Cruz de Santo André, de 1994. O seu último livro é de 1999. É de sua autoria a frase: “A inspiração é trabalhar uma boa quantidade de horas”.
Em Portugal estão editados A Colmeia, São Camilo, Ofício de Trevas, Mazurca para Dois Mortos, romance de 1983 que recebeu em 1985 o Prémio D. Dinis, Fundação Casa de Mateus. E o espantoso Vagabundo ao Serviço de Espanha, uma antologia dos seus textos de viagens selecionados pelo escritor e jornalista espanhol Ricardo Bada, livro que se aconselha a quem queira provar a sua melhor prosa e o seu amor por uma terra que calcorreou como um peregrino curioso. E o seu desbragamento humorístico:
O vagabundo, numa tabernazita não muito à mão, numa segunda-feira de mercado do ano de 1953, em Barco de Ávila, ouviu o arroto mais detonador e alarmante de toda a sua existência”
O seu gosto pelo caos impuro das suas gentes: “As ruas de Huelva, mais do que com uma panela, parecem-se com a aromática, profunda e fervente frigideira do peixe frito. Huelva é uma cidade de movimento e de comércios longínquos, de ingleses e de ciganos, de cantores de flamenco e de cobradores de contribuições partidários da lei do selo, de mineiros que trabalham a divertir-se um pouco e de pescadores que dominam todas as sabedorias do mar”.
Camilo José Cela morreu a 17 de Janeiro de 2002, com 85 anos. Depois da sua morte soltou-se uma disputa pela herança entre o filho, Camilo José Cela Conde, e a segunda mulher do pai, tendo o filho acabado por ganhar o processo. Camilo José Cela Conde tem revelado publicamente que quer, neste ano de aniversário, recuperar aquela que considera a sua faceta mais importante: a criativa. A que interessará a todos os novos leitores – os que procuram a melhor literatura.
Hoje é dia de celebração, em especial na Galiza. Mas está agendada uma exposição na Biblioteca Nacional de Espanha entre Junho e Outubro. Acaba também de ser reeditada a biografia do escritor, agora com cartas inéditas trocadas entre o próprio e a primeira mulher, Rosario Conde.
Espanha reconcilia-se com o Cela que fica: o escritor.