Foi uma cena das antigas. O centro deixou de ser o que era, aquele mais ou menos em que PS e PSD se confrontavam sobre procedimentos, detalhes ou escândalos do dia. Agora a discussão ideológica não é feita do centro para os extremos. O confronto de caminhos totalmente diferentes é feito entre Passos Coelho e António Costa. O debate que se viu esta sexta-feira 13, na Assembleia da República, transparece que esta esquerda e esta direita estão a desguarnecer o centro, ou pelo menos acusam-se mutuamente de preconceitos ideológicos. Não, não regressámos a 1976. Estamos em maio de 2016 e, apesar de todas as diferenças, quando se passou às votações, uma parte do PSD até contribuiu para a aprovação das barrigas de aluguer. Mas isso não diminuiu o que foi dito nas horas anteriores.

Pedro Passos Coelho voltou à arena parlamentar pela primeira vez depois do Congresso de PSD e o debate radicalizou-se. Primeiro, sobre os indicadores económicos. Mas sobretudo acerca da polémica da semana: os contratos de associação do Estado com os colégios privados, sobre os quais António Costa ouviu elogios de todos os parceiros de esquerda. O tema do debate, apesar de ter sido definido pelo CDS assentou como uma luva ao líder do PSD: políticas sociais e económicas, no mesmo dia em que o INE divulgava dados estatísticos do primeiro trimestre. Não havia grandes dúvidas, mas ficou ainda mais vincado aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa disse no 25 de abril: há dois caminhos e dois projetos claros para o país.

Água e azeite na economia

Direita e esquerda não se misturam. Azeite e água. Pedro Passos Coelho não podia ser mais claro, nem tão pouco António Costa. “Divergimos no caminho que o Governo adotou em termos de estratégia económica”, começou o líder do PSD. Perante o arrefecimento da economia e o crescimento de apenas 0,1% no primeiro trimestre, Passos delimitou o terreno. Enquanto o Governo aposta no crescimento baseado no consumo interno, o PSD defende uma estratégia com base “num crescimento moderado da procura interna” com maior aposta no “investimento direto externo”. E acusou o Governo de já ter responsabilidades na “destruição líquida de 45 mil postos de trabalho” no primeiro trimestre, enquanto o “investimento caiu abruptamente”.

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A narrativa de Passos Coelho no Parlamento insere-se na estratégia definida pelo líder do PSD para a próxima semana, que arranca com visitas em Leiria a empresas e contactos com empresários. “Pode haver um mau resultado lá mais para a frente”, avisou o social-democrata. E deixou uma premonição para os próximos meses: “Mesmo que o crescimento económico for cinco vezes mais nos próximos trimestres, nem assim o défice e a dívida serão cumpridos”.

António Costa, que nos últimos debates já tinha preparado caminho para este desfecho, atirando a responsabilidade pelo arrefecimento da economia para o anterior Governo, justificou-se. A desaceleração está “em linha com o trimestre anterior” e a redução das exportações tem a ver com “problemas nos mercados externos e não com questões internas”, dando como exemplo a evolução negativa das transações com Angola e a China.

Se uma linha vermelha estava traçada na economia, um muro havia de ser levantado nas questões da educação. António Costa não haveria de largar o tema durante grande parte do debate, para vincar, exatamente as diferenças inconciliáveis entre os dois grandes blocos parlamentares. “Há um equívoco no seu discurso”, lançou o primeiro-ministro, referindo-se às críticas entretanto feitas por Passos aos contratos de associação entre o Estado e os colégios privados. A polémica durou toda a semana. E Costa quis arrumar o assunto. O primeiro-ministro acusou repetidamente a oposição de confundir o que estava a ser discutido. “A escolha que aqui temos não tem a ver com a liberdade de escolha, mas é uma forma de suprir carências da rede pública, é só isso que são os contratos de associação”, afirmou Costa, que voltaria a insistir que não era um problema de legalidade que estava em causa, uma vez que não se tinha mexido na Lei de Bases, mas apenas uma questão administrativa de melhor gerir os recursos do Estado.

O momento quente deu-se quando Costa foi mais longe: acusou Passos de estar a “enganar os portugueses” no caso dos contratos de associação. Ouviu-se a seguir uma longa pateada nas bancadas da direita, em que até o líder do PSD se manifestou ruidosamente indignado.

Já sem que Passos Coelho pudesse intervir, António Costa continuou a acusar a direita, sobretudo o PSD, de ter rompido as bases de consenso constitucional, recordando as antigas propostas de Pedro Passos Coelho para rever a lei fundamental. “O que tem rompido a base de consenso é uma deriva radical da direita portuguesa.” O líder socialista disse que a direita “esgotou as suas raízes democratas-cristãs e sociais-democratas” para se ter tornado “neoliberal”. Ainda ironizou: “Não é pecado”. E lembrou já ter elogiado Pedro Passos Coelho por ter assumido sempre ao que vinha. “O PSD é a força maioritária da direita portuguesa e está contaminada por este radicalismo neoliberal, que levou a romper consensos de base na Constituição, na Lei de Bases da Segurança Social e no sistema educativo.”

No final do debate, já nos corredores, Luís Montenegro, líder da bancada laranja, anunciou que o PSD vai apresentar um projeto de deliberação para que a Assembleia da República peça um estudo ao Conselho Nacional de Educação (CNE) no sobre os contratos de associação. O PSD quer que o Governo trave as decisões tomadas nesta matéria, que considera motivadas por um “estigma ideológico”.

CDS disparou muitos tiros

O debate tinha sido aberto por Assunção Cristas, líder do CDS, que atirou sobre a António Costa uma rajada de perguntas sobretudo acerca de natalidade, impostos, aliás variadíssimo impostos, acusando o PS de aumentar a taxa do IVA de produtos como “os produtos afins do pão” e as “conservas de carne”. Também atacou no imposto sobre os produtos petrolíferos: “O senhor aumentou em 6 cêntimos o imposto sobre os combustíveis e prometeu que seria neutro para todos os portugueses. É falso! Três meses passados apenas desceu um cêntimo!” Insistiu nas medidas de austeridade que estão no já célebre “anexo” do Programa de Estabilidade, fez mais uma pergunta sobre economia e outra sobre défice, e ainda a inevitável questão sobre os contratos de associação. Foram pelo menos sete perguntas.

Perante a torrente de questões de Cristas, o primeiro-ministro pouco adiantou em relação ao que já tem dito. Não haverá Plano B, o orçamento não prevê aumentos e IMI, o gasóleo custava mais 6 cêntimos no tempo do Governo da coligação, e assumiu que pode ter havido um “equívoco” ao referir-se ao plano de contingência na entrevista à SIC (ver aqui fact check).

Os elogios do Bloco para fazer exigências

Os amigos parlmentares do PS são assim: falam do que está bem para depois pedirem mais qualquer coisa. Não serão os BFF (Best Friends Forever) com que Paulo Portas os classificou, porque a relação é de interesse. A porta-voz do Bloco, Catarina Martins, focou-se nos ataques à direita no caso da Educação e nos contratos de associação, acusando PSD e CDS de defenderem “rendas para os amigos”: “O que move a direita que tem estado num frenesim?” Acusou ainda PSD e CDS de hipocrisia, por estarem agora preocupados com o desemprego dos professores do privado, quando “condenaram ao desemprego milhares de professores que convidaram a emigrar” quando foram Governo.

Costa apreciou a caracterização da bloquista sobre como “a direita abordou este debate”, mas depois não se comprometeu com respostas quando Catarina Martins lhe colocou mais perguntas concretas. Depois de elogiar o Governo na Educação, lançou-lhe um “desafio”, para saber se podia fazer o mesmo na Saúde. “Para que o caminho contra as rendas possa estender-se a outros setores”. Basicamente, o que a porta-voz do Bloco queria era, como na Educação, usar a capacidade instalada do Estado para se recorrer menos a contratualizações com o setor privado.

“Guiamo-nos pela boa gestão dos dinheiros da Saúde, quer das PPP, quer dos meios complementares de diagnóstico”, respondeu António Costa. O primeiro-minsistro disse que havia estudos a concluir e que aí teria respostas mais seguras. “Esses estudos estão a ser concluídos e o critério tem de ser reforçar o SNS, assim como na escola estamos a reforçar o ensino público”.

O tom com Jerónimo de Sousa foi tão ameno quanto o do Bloco. O secretário-geral do PCP também acusou PSD e CDS de ter maltratado os professores e Costa acrescentou um dado: a coligação mandou 28 mil professores para o desemprego.

No debate que coincidiu com os seis meses de Governo socialista apoiado por toda a esquerda parlamentar, a “geringonça” provou que parece continuar a ter consistência. Podem discordar dos caminhos que defendem, mas pelo menos nessa parte do seu discurso oficial sobre a solidez dos acordos à esquerda, Passos e Costa estão de acordo.