Uma passagem por Santo Tirso obriga o bom guloso a comer um jesuíta. Uma ida a Lisboa tem paragem obrigatória em Belém, para provar o famoso pastel criado em 1837. No Algarve vai-se a banhos de sol e de Dom Rodrigo. Mas os portuenses já se terão deparado com este problema: quando alguém de fora pede que lhe tragam o doce típico do Porto, o que fazer? Há décadas que a quase centenária Leitaria da Quinta do Paço é uma solução informal, com os seus éclairs recheados de chantili. A fama foi conquistando gente de todo o país. Em breve, os lisboetas terão também o proveito, com a abertura da primeira Leitaria da Quinta do Paço na capital. E as novidades não se ficam por aqui.

Não é abuso falar em doce típico. Em 2012, esta casa quase-centenária registou o éclair clássico de chocolate de leite com recheio de chantili como “O Doce do Porto“. Mais uma vez parece não haver abuso, se pensarmos que foi a Leitaria da Quinta do Paço que deu a provar pela primeira vez, na década de 1960, a muitos portuenses, um estranho creme branco chamado chantili, de fabrico próprio. Desde aí que se tornou local de passagem obrigatória para quem quer comer bons éclairs na cidade e arredores.

Hoje vendem-se dois mil por dia só na loja original, situada na Praça Guilherme Gomes Fernandes, na Baixa do Porto, e é frequente o bolo esgotar uma hora antes do encerramento. A oferta divide-se entre os éclairs permanentes, como o clássico de chocolate de leite, o de chocolate negro, o de limão, o de frutos vermelhos, o de creme de café, o de caramelo artesanal, o de chocolate crocante, o de maracujá e o black & white, com recheio de mousse de chocolate. Depois há os sazonais, como o de mirtilo, morango ou maçã e canela, que podem ser provados durante uma estação. Há também aqueles pensados para datas especiais, como o Natal, a Páscoa, o dia dos namorados, da mãe, do pai e até o Halloween. Esses só ficam na loja durante alguns dias e desaparecem. Para o S. João do Porto, o éclair deste ano vai ter uma cobertura com as cores do fogo-de-artifício, à qual é suposto adicionar Petazetas, para que a imitação do fogo seja perfeita.

Entre 2013 e 2016 abriram três novos espaços no Grande Porto. Agora, 96 anos depois da sua criação, a Leitaria da Quinta do Paço vai expandir-se 300 quilómetros a sul. “Há muitos lisboetas que vêm cá e que perguntam quando é que vamos para a capital. Quase que fomos obrigados a fazê-lo!”, diz ao Observador Alexandra Sotto Maior, diretora de marketing da empresa detentora da marca. A resposta é julho, mês em que os éclairs, bolas de Berlim, duchesses e demais doces vão passar a morar no número 53 da Avenida João XXI, perto da Avenida de Roma. Na inauguração haverá um éclair pensado propositadamente para a cidade, promete a responsável.

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Nas datas especiais há éclairs comemorativos. Este, com triplo recheio, foi feito no ano passado, para o Dia da Mãe. (foto: © Divulgação)

O prédio é antigo e o espaço tem história: durante muitos anos foi uma padaria famosa por ser um dos raros sítios onde os lisboetas podiam matar a fome a altas horas. À entrada haverá mesas para sentar 40 pessoas e um pequeno espaço de esplanada. Numa segunda área estará o típico balcão em madeira ripada, comum a todas os estabelecimentos, com bancos altos para acomodar mais alguns clientes. “Ainda por cima o edifício tem uma fachada que é muito semelhante ao que era a que tinha a Leitaria nos anos 1950. Parecia caído do céu”, explica, orgulhosa.

O que não cai do céu são os bolos. Transportá-los todos os dias da fábrica situada em Vila Nova de Gaia até Lisboa não só ficava caro como a frescura seria afetada, pelo que Lisboa terá a sua própria fábrica da Leitaria da Quinta do Paço, na mesma morada. E parte da confeção até estará visível ao público. O que nos leva à segunda pergunta: uma fábrica só para uma loja? “Já estamos a trabalhar nisso”, adianta. Os contactos que Alexandra, Joana e José têm recebido de interessados em abrir mais espaços da Leitaria na cidade do Pastel de Belém têm sido muitos, mas a ideia-chave é contenção.

Não somos a McDonald’s, não queremos ter um franchising em cada esquina.” Feita a ressalva, a verdade é que já admitem levar os éclairs também para a zona da Baixa-Chiado e, mais tarde, abrir um terceiro espaço, “talvez em Cascais”. Não deverá fugir muito deste número. “No Porto também não vai abrir mais nenhum. Poderá haver é em Braga. É uma hipótese que estamos a considerar”, esclarece.

Tudo começou com garrafinhas de leite

96 anos de percurso guardam muitas histórias de amor e fidelidade. Até porque, dizem, o açúcar vicia. Mas não foi com açúcar que a Leitaria começou a funcionar. Fundada em 1920 em Paços de Ferreira, pela família Aranha Furtado de Mendonça, começou por ser uma fábrica de leite. “Foi a primeira a vender leite pasteurizado na região Norte e a distribuí-lo às vendedeiras em garrafinhas de vidro”, explica Alexandra Sotto Maior.

Há poucos registos do historial da empresa. Sabe-se que na década de 60 começaram a ser impostas algumas restrições à distribuição de leite, apareceram as cooperativas e a fábrica teve de se começar a diversificar. Foi aí que começaram a produzir a manteiga, queijo, os iogurtes e o ingrediente-chave dos éclairs, o famoso chantili. “Era uma novidade na cidade do Porto. Havia pessoas aqui que nunca na vida tinham provado chantili, temos relatos de clientes mais antigos que se lembram de vir aqui com os avós, por exemplo, e de nos contarem como foi provar pela primeira vez”, conta.

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As vendedeiras regressam à Fábrica em Paços de Ferreira já com as garrafas de leite vazias. (foto: © Leitaria Quinta do Paço)

A Leitaria começou a ser famosa pela venda do chantili a peso, em sacos de papel. A responsável conta que havia clientes que chegavam de Braga, por exemplo, de propósito para comprar o chantili. Ainda hoje há pessoas mais velhas que ali o adquirem religiosamente. Foi também na década de 1960 que o proprietário foi à Suíça e provou, pela primeira vez, éclairs recheados com chantili. E disse: “Espera, o chantili que eu faço é muito melhor, portanto eu consigo fazer isto!“, relata Alexandra. E assim nasceu “O Doce do Porto”.

Para colmatar a falta de documentos, a gerência começou a pedir aos clientes que passavam pela loja que contassem as memórias que tinham da Leitaria. Alguns desses relatos estão agora impressos nas caixas que servem para levar os éclairs e demais doçaria para casa. Há pessoas que contam que foi ali que começaram a namorar, outras que foram pela primeira vez pela mão dos avós e agora são elas que trazem os netos.

“- Dois éclairs, por favor.
Toma. São completamente diferentes dos da Estoril, mas vais ver que vais gostar.
Nunca tinha visto um bolo daqueles, mas era bom. O tal “creme branco” dava pelo nome de chantili e era diferente do que eu estava habituado. Era tão fofo e cremoso que desapareceu num “abrir e fechar de olhos”.
– Olha que a sopa, não comes tu assim…
Nunca mais me esqueci desse dia.
– Mãe, quando vamos à “Quinta do Paço”?
Relato de Paulo M. Roncha, enviado em janeiro de 2014 à Leitaria.

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Uma “excursão do pessoal” da empresa, em 1951, à loja da Baixa, que ainda hoje se mantém.
(foto: © Leitaria Quinta do Paço)

“A fase áurea da Leitaria começou aí, nos anos 1960. Toda a gente conhecia, toda a gente vinha cá comer os éclairs e comprar o chantili. Era uma casa muito conhecida”. Entretanto, a família Aranha Furtado de Mendonça vendeu a empresa a alguns funcionários. Nos anos 1990 deu-se a desertificação da Baixa do Porto e os problemas começaram. A população foi procurar casas melhores e mais baratas nos arredores, surgiram os centros comerciais. No centro ficaram os menos desfavorecidos e a população idosa, que continuou a ir à Leitaria pela memória afetiva ao espaço. Muitos negócios não resistiram e até a mítica Arcádia passou momentos difíceis. “No final dos anos 90 já não havia condições absolutamente nenhumas para trabalhar e isto esteve prestes a fechar”, reconhece Alexandra.

“Vamos levantar a Leitaria”

Alexandra Sotto Maior não precisava propriamente de ir à Leitaria para matar a gula. Ela, assim como Joana Ramalho Costa e José Eduardo Costa, eram amigos de Fernando Azevedo, filho dos últimos proprietários, o que dava direito a privilégios de vez em quando, como éclairs levados em mão e à borla. Em abril de 2012, o herdeiro disse que não queria continuar com o legado. Apesar de trabalhar em áreas completamente diferentes, o casal Joana e José decidiu arriscar e comprou a loja. Foi também nessa altura que Alexandra passou a ser a responsável pelo marketing.

O objetivo era só um: “vamos levantar a Leitaria”. Com um orçamento reduzido, os primeiros passos foram no sentido de dar um outro ar à loja e à marca, “pôr as coisas a funcionar como devia ser” e “começar a servir as pessoas com a qualidade que elas mereciam”. O resultado, recorda, “foi quase imediato”, ajudado pelo boom do turismo que a cidade já estava a viver.

Passados poucos meses, receberam uma proposta que os deixou “com um friozinho na barriga”: abrir uma segunda loja no Mercado Bom Sucesso. Apesar do receio, avançaram e a Leitaria da Quinta do Paço passou a estar no renovado mercado, que abriu em junho de 2013. Não só ainda lá está como fatura “tanto ou mais” que a loja da Baixa.

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O espaço no Norteshopping abriu em 2014. (foto: © Divulgação)

Uns meses passados, nova proposta. Desta vez foi uma amiga de Joana Ramalho Costa, que percebeu o potencial da Leitaria e propôs-lhe abrir também no Norteshopping. Tratando-se de um dos centros comerciais em Portugal com maior sucesso, parecia uma ideia 100% infalível. O problema é que a Leitaria já ali tinha tentado ter um segundo espaço. “Há um mito urbano que diz que quem abre no Norteshopping e sai de lá, vai à falência“, confidencia Alexandra. A loja fechou em 2010, ainda com os anteriores proprietários. Da falência, Joana e José pareciam estar já a salvo, pelo que valia a pena desafiar o mito e arriscar de novo. Abriram em 2014 e até agora parece não haver razões para temer a malapata.

Embalados pelo ritmo de uma abertura por ano, em outubro de 2015 inauguraram a quarta e mais recente Leitaria da Quinta do Paço, desta vez em Matosinhos, a 200 metros da praia. “Trabalha muitíssimo bem”, orgulha-se a responsável. Tudo isto também só foi possível com a mudança da produção da pastelaria para um espaço mais amplo em Vila Nova de Gaia, em 2012. “Quando assumimos, a fábrica ainda funcionava aqui [Praça Guilherme Gomes Fernandes], era necessária uma mudança urgente”, recorda. A fábrica, onde atualmente trabalham 10 funcionários, foi ampliada em 2014 e está neste momento em obras outra vez. Um reflexo do crescimento da procura.

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Várias décadas depois, a fábrica hoje já não produz leite e está em Vila Nova de Gaia. É lá que se fazem os éclairs, todos à mão. (foto: © Leitaria Quinta do Paço)

Para além das obras na fábrica, durante alguns dias a loja da Baixa também esteve encerrada para melhorias. Abriu informalmente na última quinta-feira, depois das 15h, mas ainda com alguns pormenores por afinar. Mesmo assim, os clientes entraram em força e esgotaram os éclairs. Sexta-feira foi o grande dia para a velha loja se mostrar de cara lavada. A nível visual, as cores estão mais claras. As imagens antigas estão em destaque, para lembrar um percurso que em breve fará 100 anos. O balcão de madeira ripada e o papel de parede estão diferentes e, à esquerda de quem entra, há agora um banco corrido, mais confortável.

No futuro querem que a loja da Baixa tenha uma vitrina com alguns objetos da sua história que se conseguiram aproveitar, como garrafas de vidro de leite antigas, copos de iogurte feitos em cerâmica, balanças, o PBX que havia na fábrica, em suma, “tudo o que deu para recuperar”, diz Alexandra.

As diferenças após as obras são, sobretudo, estruturais, para modernizar um espaço que já abriu na década de 1950. “Nós temos duas queixas frequentes aqui. A primeira é que, a partir das 19h00, já não há éclairs. A segunda é que o serviço é muito lento”, reconhece. O primeiro lamento é difícil de corrigir porque os bolos são feitos todos os dias e, se sobrar alguma coisa, não se pode aproveitar. Preferem não arriscar o desperdício. A segunda queixa sim, vai ser solucionada. O problema é que a cozinha era muito pequena para acolher vários funcionários, sendo impossível preparar brunches, batidos, crepes e demais pedidos ao mesmo tempo. “90% desse problema vai ser resolvido”, promete. Em consequência dessa melhoria, o menu vai crescer.

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Do lado esquerdo há agora um banco corrido. Ao fundo, uma fotografia das vendedeiras de leite. (foto: © Leitaria Quinta do Paço)

E porque é que estes não são apenas mais uns éclairs como tantos outros? “É a qualidade dos ingredientes, a massa crocante e fofa ao mesmo tempo, sem ser muito doce, a qualidade do chantili e o chocolate, que é receita própria e está guardada a sete chaves”, explica a responsável.

Há dois anos, Joana, José e Alexandra foram até Paris com uma missão extremamente aborrecida: provar todos os éclairs que pudessem, nas diferentes casas da especialidade, da Ladurée à Fauchon. O veredito? “A diferença fundamental que encontrámos foi a nível visual. Em França têm uma apresentação fantástica, mas também são bem mais caros, variam entre os 4,50€ e os 8€”. Em termos de sabor, sentem que o “Doce do Porto” e as restantes variações produzidas na Invicta não ficam a dever em nada, pela sua genuinidade. “Em alguns casos o limão não sabia bem a limão, o chantili não tinha tanto sabor”. Por tudo isto, Alexandra não se coíbe de afirmar: “Tenho a certeza que já há em Lisboa muita gente que tem um carinho especial pela Leitaria e que vai ser um sucesso.”