A Operação “Jogo Duplo” não deverá impedir o início normal da competição da II Liga em agosto. Tudo, porque é praticamente impossível que sejam aplicadas sanções desportivas em tempo útil aos clubes envolvidos na alegada corrupção desportiva e viciação de resultados que está a ser investigada pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa.

Além de clubes que foram despromovidos ao Campeonato Nacional de Seniores, por terem ficado nos dois últimos lugares da classificação (Oliveirense e do Oriental), existem clubes, como o Leixões, que garantiram a manutenção.

Neste momento está a verificar-se o prazo de 30 dias para a homologação dos resultados desportivos das últimas jornadas da II Liga, findo o qual serão homologados os resultados finais daquela competição. O regulamento das competições profissionais, contudo, permite a suspensão da homologação caso existam denúncias de corrupção ou de alteração da verdade desportiva.

O problema é que as eventuais investigações desportivas muito dificilmente estarão concluídas antes do início da competição que tradicionalmente ocorre em agosto.

Contactado pelo Observador, Ricardo Costa, ex-presidente da Comissão Disciplinar da Liga, que aplicou as sanções desportivas do processo Apito Dourado, explica que, neste momento, “está em curso um processo criminal, no sentido de apurar responsabilidade no âmbito de corrupção desportiva prevista e punida na Lei 50/2007”. E acrescenta: “As decisões que poderão terão efeitos desportivos para os clubes, dirigentes e jogadores, resultam de condenações dos órgãos disciplinares desportivos, tomadas no âmbito de processos de inquérito e disciplinares instaurados e decididos por tais órgãos”.

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O problema é que as investigações desportivas (que estarão a cargo da Comissão de Instrução e Inquéritos da Liga de Clubes) ainda nem sequer começaram. Na opinião de Ricardo Costa, “esses processos de inquérito desportivo terão necessariamente que começar com a solicitação da prova obtida no processo criminal e depois seguirão os seus termos com independência desse processo criminal”.

“Estamos, portanto, muito longe de termos decisões disciplinares desportivas definitivas com repercussões na competição”, sublinha. Isto é, ainda não foi concluída nenhuma fase que faz parte do processo disciplinar desportivo:

  • Inquérito disciplinar – cuja instrução depende da Comissão de Instrução e Inquéritos da Liga de Clubes e que termina com um arquivamento ou conversão em processo disciplinar;
  • Processo disciplinar – cuja instrução também pertence à Comissão de Instrução e Inquéritos da Liga de Clubes e que termina com uma acusação ou um arquivamento;
  • Julgamento da acusação – competência do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (Secção Profissional) que termina com uma condenação ou absolvição;
  • Recurso de eventual condenação – a cargo do Tribunal Arbitral do Desporto;
  • Segunda instância de recurso – a cargo da Câmara de Recurso do Tribunal Arbitral do Desporto ou do Tribunal Central Administrativo Sul.

Só no fim de todo este caminho processual é que ocorrerá o chamado caso julgado desportivo — o equivalente ao trânsito em julgado na justiça civil.

Suspensão da homologação dos resultados da II Liga?

A lei admite, contudo, a suspensão da homologação dos resultados finais de qualquer competição desportiva profissional, no caso de existirem denúncias sobre alegada corrupção desportiva ou alegada viciação de resultados — precisamente o centro do processo “Jogo Duplo”. Mas a questão é prática.

“É verdade que a homologação dos resultados dos jogos, verificada tacitamente 30 dias após a sua realização, será paralisada se houver denúncias (e instauração de processos desportivos). Além disso, o Regulamento Disciplinar permite que, nas infrações de adulteração da verdade desportiva (onde estão os acordos para obtenção de resultados irregulares), se altere para jogos homologados o resultado do jogo viciado”, diz Ricardo Costa. Tais queixas poderão ocorrer por via dos três clubes que, além da Oliveirense e do Oriental, também foram despromovidos: Atlético, Mafra e Farense.

Porém, mesmo que, em tempo útil, se identifiquem os jogos nos processos disciplinares da Liga/FPF e os seus resultados desses jogos não fiquem ‘fechados’, não é admissível que se possa retirar eficácia jurídica à tabela classificativa final resultante dos resultados desportivos e deixar de dar início com normalidade à próxima época desportiva com base nas determinações atuais quanto a subidas e descidas”, afirma Ricardo Costa.

O também professor da Faculdade de Direito de Coimbra explica ainda (“para acrescentar dificuldade”) que a alegada “corrupção” de jogadores determina a nulidade do jogo e a sua repetição, desde que não tenha sido homologado. Sendo assim, resultando decisões condenatórias desses eventuais processos desportivos (nomeadamente depois da pronúncia, se for o caso, do novo Tribunal Arbitral do Desporto), os eventuais efeitos dessas decisões (para clubes, dirigentes e jogadores) vão produzir-se no âmbito e no contexto da época desportiva que esteja então em curso”, conclui.

Escutas ou não escutas?

Outra questão é a utilização de parte dos indícios, nomeadamente das escutas telefónicas, que já foram recolhidos pelo Ministério Público e que estiveram na origem detenção de 15 jogadores e dirigentes, e a aplicação da medida de coação máxima (prisão preventiva) a três deles, suspeitos da prática de viciação de resultados.

As escutas telefónicas foram fundamentais para a condenação do FC Porto e do Boavista, e respetivos dirigentes, por parte da Comissão Disciplinar da Liga de Clubes, no âmbito do processo Apito Dourado. O ilícito disciplinar em causa prendia-se com coação sobre as equipas de arbitragem.

Contudo, o acesso a tais provas, recolhidas pelo Ministério Público, só foi possível depois de a procuradora-geral adjunta Maria José Morgado, coordenadora da Equipa Especial de Investigação do Processo Apito Dourado, ter extraído, em fevereiro de 2007, uma certidão das escutas telefónicas, interrogatórios e outras provas para efeitos disciplinares.

Na altura, Maria José Morgado justificou a decisão de extrair certidão de elementos em segredo de justiça (boa parte dos processos ainda estavam em fase de inquérito) com o facto de “o Código de Processo Penal permitir ao Ministério Público extrair certidão de processos que estejam em segredo de justiça, se estiver em causa o exercício de um poder público disciplinar, como é o caso”. Isto é, o CPP permite que a “autoridade judiciária” possa “autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, desde que necessária a processo de natureza criminal ou à instrução de processo disciplinar de natureza pública, bem como à dedução do pedido de indemnização civil”. (artigo 86º, número 11).

O problema é que, no que diz respeito às escutas telefónicas, uma decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa em 2014 veio a declarar ilegal a sua utilização em processo disciplinar desportivo. Facto que levou o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) — que herdou os poderes da Comissão Disciplinar da Liga — a absolver Pinto da Costa e o FC Porto, em setembro de 2014, das condenações que tinham sofrido em 2008. Outros órgãos disciplinares, como o Conselho de Justiça, tomaram decisões no mesmo sentido, de forma a cumprirem decisões das instâncias judiciais administrativas.

Além deste entendimento, que deverá impedir o uso de escutas telefónicas nos processos disciplinares que nasçam do caso “Jogo Duplo”, existe ainda a opinião vincada de José Manuel Meirim, o novo presidente da Conselho Disciplinar da FPF.

No âmbito do debate público, que surgiu na sequência da posição da Comissão Disciplinar liderada por Ricardo Costa, Meirim afirmou ao Público que as escutas não podiam ser utilizadas num processo disciplinar desportivo.“As escutas telefónicas estão permitidas legalmente para determinados tipos de crime ou pela sua gravidade ou pela sua especificidade, onde se encontra, entre outros, a corrupção”. O professor de Direito deu mesmo a entender que as escutas telefónicas promovidas no âmbito de um determinado inquérito penal não podem ser transmitidas a outros inquéritos. “Isto ainda e dentro de processos penais, quanto mais quando se sai fora do processo penal, neste caso para o processo disciplinar, que é um ilícito inferior em termos de gravidade, pelo menos ao nível do juízo social“, afirmou.