Às vezes acontece, é chato. É o entra e sai da loja que, com a pressa de chegar a casa e vestir a compra, não deixa lembrar tudo. Tira-se a peça do saco, ela cai no corpo e a vestimenta vai com a etiqueta. Está lá o preço, o tamanho, o nome e, às vezes, o propósito. Para que serve aquilo. Quando a memória não dá para tudo e deixa de fora a lembrança de arrancar o que vem colado às coisas, ela fica ali. Perdura até alguém reparar e puxá-la, tirar à força o pedaço de papel que, no fundo, não serve para nada. Está ali porque sim, a constatar o que é óbvio, a mostrar o que toda a gente com dois olhos na cara consegue ver. Uma t-shirt é uma t-shirt, um par de sapatos são dois sapatos e por aí fora, já deve ter percebido a ideia. E André Silva é um avançado.
É um miúdo, imberbe pelos 20 anos, que parece não se cansar. Corre, sprinta e dá corda às pernas, tenta mexer-se muito e rápido, personificar num indivíduo o que a equipa não junta no coletivo. As bolas vão-lhe ao peito, as costas aguentam cargas dos centrais, os pés dominam passes e tocam-nos para a frente. Ele parece que não se cansa, mas cansa só de o ver. O muito que tenta mexer com o jogo nota-se mais pelo pouco que os outros fazem. Herrera é chato e anda demasiado perto dele, a querer à força ser um segundo avançado. Brahimi é mole e não se desmarca, fica parado e quer a bola no pé. Danilo e Sérgio Oliveira estão longe e tocam pouco na bola. Olha-se para a etiqueta, lê-se que André Silva é o único a tentar a sério.
Ele fala pouco, está concentrado no que tem de fazer. Ouve-se pouco. Também não se ouve nada entre Chidozie e Marcano, os dois centrais que têm de ser melhores amigos e telepáticos, mas que chocam. Vão à mesma bola, um não avisa o outro e um passe longo alonga-se mais porque ambos ficam a olhar, à espera do que pode acontecer. Helton também nada diz enquanto foge da baliza, sai da área e fica na terra que se chama de ninguém. O guarda-redes fica a meio caminho e vê Rui Fonte a ultrapassá-lo com a bola. O único que nunca para de correr na jogada é quem marca (12’) e castiga a primeira trapalhada. A primeira final de André Silva começa mal.
O miúdo não muda. Corre, desmarca-se, mexe-se muito e protege bolas. Usa a cabeça para rematar num canto. Salta alto, a pontaria não lhe quer nada. O FC Porto melhora, conta 10 minutos até ao intervalo com genica, Layún e Maxi começam a ser extremos enquanto Danilo pega a equipa pelo colarinho, exige ter a bola e ser ele a controlar como e por onde se joga. Mas a equipa não cria, usa o miúdo avançado como recurso, ponto de chegada de passes diretos quando os indiretos das tabelas, dos toca e vai e dos passes curtos não funcionam. Ou seja, usa-o muito e cria pouco. Um susto para o Braga só aparece quando Maxi é malandro e tenta um chapéu (35’) a uns quarenta metros de Marafona.
André Silva foge para o balneário à boleia de um cabisbaixo. Assim não, pensa ele e diz José Peseiro, que troca um central imberbe (Chidozie) por um improvisado (Danilo) e mostra à equipa que sim, toca a arriscar. Ganham-se uns pés com mais do que jeito para tratar a bola lá atrás e a equipa acorda um pouco. Layún dá outro extremo à esquerda e puxa por Brahimi. Os dragões fazem as coisas mais rápido e um remate de Herrera é veloz a rasar o poste direito (56’). Melhoram antes de piorarem, muito. Peseiro tira um central e pensa resolver o problema, mas o que deixa em campo dá-lhe outro. A bola que Helton devolve a Marcano é a que o espanhol domina como se o pé esquerdo fosse de madeira e deixa fugir. “Oh não”, pensa André Silva, na outra área.
Porque Josué aparece ali disparado, empurrado pela pressão que o Braga faz com a parcimónia decidida por Luiz Carlos e Mauro, os médios que seguram na equipa como se fosse um fantoche às suas ordens. O português rouba a bola ao central e atira logo para a baliza que Helton não está a tapar. É um golo fácil (57’) para o médio que os dragões têm emprestado aos minhotos, que cai na relva a chorar. Marca do “clube do coração”, o mesmo que está na etiqueta de André Silva, que a partir daqui começa a ter outras coisas lá escritas.
Lê-se que é raçudo, que sobe o nível quando a equipa parece decrescer o seu, que acredita até a bola parar de mexer. A esperança puxa-o até à linha de golo, arranca antes de o remate em jeito sair do pé direito de Brahimi, à esquerda da área, depois de um cruzamento tenso de Varela. A mão esquerda de Marafona desvia-a para ficar à mercê da recarga do miúdo. É o segundo golo (61’) em dois jogos para André Silva, que é ainda mais rápido a sprintar com a bola na mão até ao meio campo. Menos de 30 segundos depois ela já rola, o FC Porto tem pressa. Acaba de ser ressuscitado pelo novato.
Todos vão atrás dele e a equipa começa a jogar à bola, só agora. Peseiro apanha boleia e empurra Aboubakar lá para a frente. Os dragões ficam a conhecer o 4-4-2 que dá Herrera ao jogo na direita. O mexicano transforma-se em extremo e só ali faz quase tudo bem. Recebe, não perde bolas, passa-as rápido, o futebol é simples. Brahimi percebe que tem de fazer o mesmo. André André dá o pulmão e Rúben Neves as boas decisões que faltavam ao centro. O Braga quer segurar o golo que tem a mais e encolhe-se, pede a Rafa que defenda muito e o homem com mais queda para ataques rápidos deixa de contra-atacar. Os minhotos cingem-se à defesa, André Silva limita-se a dar tudo por tudo.
É ele que se desmarca para o espaço a cada jogada de ataque, deixa Aboubakar ficar os centrais e dar-se às tabelas. Todas as bolas parecem querer ir ter com o português. O FC Porto cresce, cresce e cresce enquanto o Braga é encolhido e não se importa de se ir encolhendo. Nada cria no ataque e tem de ser Helton a criar pelos minhotos, quando falha um passe na bola, deixa a rosca ir quase até à linha de golo e ainda dribla Hassan antes de resolver a iminente trapalhada. O susto é valente, vale tanto quanto os vários que os dragões pregam a Marafona, do outro lado. Brahimi, Herrera, Rúben Neves, todos tentam e nada entra. Chegam os descontos e a urgência dá para tudo, até para Helton subir para um canto.
O homem das luvas está ali no primeiro poste, a saltar e a disputar a bola que Layún cruza. Provoca a carambola, o ressalto que sobe e pinga ali na esquina da pequena área. É o sinal para André Silva ativar o instinto, carregar no botão que o faz brilhar. O miúdo salta, dá uma pedalada forte e inventa um pontapé de bicicleta que dá à bola uma chegada à baliza ao sprint. A etiqueta colada ao avançado já não tem espaço para tanta coisa — é este que bisa, que marca um golaço aos 91’, que celebra perto da bandeirola, que faz Casillas correr e festejar como uma criança, que dá ao Jamor um ambiente maluco. É André Silva que puxa o Braga para outro prolongamento à segunda final consecutiva da Taça de Portugal.
Os 90’ acabam e deixam entrar outros 30’ que mostram como o avançado joga o dobro ou o triplo por ter os golos no bolso. Fica cheio de confiança, farta-se de pedir a bola, parece incansável e mostra como o Braga está cansado. Os minhotos apenas defendem, passam o prolongamento a defender e de rastos por serem apanhados no marcador à última. Os dragões jogam como nunca na final e o futebol fica bonito. André Silva remata três vezes em meia hora, transborda de pormenores a mais para quem só tem 20 anos. Herrera parece ter nascido um extremo, Aboubakar nada complicada, Rúben Neves parece controlar passes longos com a mente. Tudo melhora para eles, mas nada entra nas balizas.
Os penáltis que pareciam um pesadelo para o Braga tornam-se num alívio. Porque eles fazem sempre o mesmo, não importa qual seja o jogo — começam outro jogo. O da confiança, da concentração, da sorte, do instinto, do ganha quem tiver menos dúvidas na cabeça. As que Marafona mal teve quando se parou os remates de Herrera e Maxi à medida que Pedro Santos, Stojiljković, Hassan e Marcelo Goiano não falhavam (e batiam os senhores penáltis). A festa é minhota e todos correm para junto do guarda-redes. Cinquenta anos passam até ali, ao momento em que o Sporting de Braga enche o Jamor de festejos e sorrisos minhotos. André Silva não pode fazer nada, mantém-se no meio campo, não bate qualquer penálti.
É uma das caras tristes, um dos cabisbaixos portistas que são obrigados a ficar no relvado até o Presidente da República bracarense entregar a taça ao Braga. Na etiqueta dos minhotos passa a ler-se “detentor de duas Taças de Portugal” e na de José Peseiro aparece que não conseguiu salvar a época ao FC Porto. Pelo terceiro ano seguido e pela segunda época consecutiva, os dragões nada ganham no futebol — são nove competições que passam. São derrotados pelo último treinador a dar-lhes um troféu (Paulo Fonseca, verão de 2013/14) e perdem sob o leme do técnico que tinha dado (José Peseiro, primavera de 2012/13) o anterior caneco ao Braga. Mas na etiqueta de André Silva leem-se outras coisas.
Que aos 20 anos tem tudo para dar certo. Que não merecia passar tanto tempo de uma época a brilhar na equipa B. Que não ajuda começar a jogar apenas quando o FC Porto já estava a cambalear na temporada. Que tem velocidade, domínio de bola, jogo de costas para a baliza e instinto para usar os dois pés que cheguem para estar sempre no ataque do clube. Que vai levar com atenções e expetativa a dobrar por ter nascido num país onde não nascem muitos avançados amigos dos golos. Que é nele que parece estar o futuro dos golos em Portugal, se tudo correr bem. Mas depois também se lê que tem uma final da taça perdida. De tudo isto não te vais livrar, André Silva.