Coitado. É isso que vem à cabeça quando John Smit flete um pouco os joelhos e, bem devagar, se põe a andar de lado, como se fosse um senhor curvado pela idade. Está a replicar os momentos em que, nos seus 20, se tinha de levantar da cama como se fosse um idoso curvado pela idade. Sentia mais as dores do que o corpo. Os ombros, as costas, os joelhos, as pernas, os braços, passava os dias aflito pela vida que levava fora de casa. John era um jogador de râguebi e um dos bons, dos melhores mesmo. Em 2007 estava em França, no centro de um relvado em Paris, a levantar o troféu do Campeonato do Mundo como capitão da África do Sul, a seleção dos springboks, como são conhecidos. Agora está aqui, a pisar a relva de um hotel em Cascais e a conversar connosco, como se nada fosse.

E está descontraído, feliz da vida, já com uma ou duas cervejas portuguesas bebidas, das quais gostou bastante. Encontramo-nos com John Smit porque ele está no meio de 20 e tal ex-jogadores sul-africanos. São os Springboks Legends que voam até Lisboa para defrontarem uma equipa de lendas dos Lobos. O jogo acontece no sábado, a 4 de junho, mas não é por estarem reformados que a história desvia muito do que se esperava: quem vem da África do Sul ganha, por muitos (75-12). A brincadeira que Tomaz Morais, selecionador nacional quando Portugal vai ao Mundial de 2007, nos confessa no evento de apresentação do jogo até fazia sentido: “Era bom que o jogo pudesse ser de touch [em que não há placagens e um jogador para de correr quando é tocado]”.

Mas não é. Como não foi durante os 15 anos em que John Smit andou em campo. Levou porrada, foi massacrado, foi um talonador no meio dos avançados, um tipo grandalhão que estava ali para placar e tentar não ser placado. Fora a barriga, que deixou crescer nos três anos de jogador retirado, está quase igual. É grande e alto e impõe respeito até começar a falar, porque aí sorri, ri e fala muito, nota-se que não perdeu o hábito de ser amigável e conversador, como o cargo de capitão dos springboks lhe exigiu. “As pessoas têm de viver na África do Sul para entenderem a responsabilidade que o cargo exige, porque isto muda a tua vida. Quando aceitas não estás a dizer que sim apenas por ti, mas pela tua mulher, os teus filhos, familiares, toda a gente”, chega a dizer, quando é preciso falar sobre o nervosismo que sentiu quando soube que ia passar a liderar a seleção do país onde o râguebi está à frente de quase tudo.

Começou a estar em 1995, quando o primeiro presidente democraticamente eleito na nação cheia de feridas abertas pelo regime do apartheid viu no râguebi um truque para unir o país. Nelson Mandela apostou nuns Springboks de rastos, puxou os negros para um desporto adorado pelos brancos e viu a África do Sul conquistar o Mundial em casa. John Smit era um adolescente que estava no estádio, em Joanesburgo, um de milhares que viu um avião fazer um voo rasante sobre o Ellis Park para desejar boa sorte à equipa. Uns meses depois, tornou-se num dos primeiros a tornar-se jogador profissional de râguebi.

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É verdade que querias ser um jogador de ténis quando eras miúdo?

Sem dúvida, era tudo o que eu jogava. Apenas comecei a jogar râguebi quando era mais velho. Vivia num subúrbio onde, mesmo do outro lado da rua, havia um court de ténis. Por isso, depois de fazer os trabalhos de casa, passava todos os minutos ali. Era ténis, ténis e ténis.

Ainda gostas?

Adoro ténis, de vê-lo, porque já não jogo. Como podes ver, acho que nunca ganharia o torneio de Wimbledon. Só comecei no râguebi aos 11 anos.

Quando decidiste trocar de vez?

Provavelmente quando tinha 14. Ainda jogava ténis, mas o meu jogo era baseado no serviço e no volley, não conseguia fazer mais nada. Optei pelo desporto que usava mais potência e força. O facto de fazer parte de uma equipa, de sentir o espírito de camaradagem, também desfrutava mais disso.

Nessa altura não tinhas medo de placar ou de ter pores à frente de matulões?

Sempre fui um rapaz muito grande, portanto, nem por isso [ri-se]. Nessa idade tens que ter bastante cuidado, embora não haja grandes impactos. Na África do Sul não associamos muito o receio e o medo ao râguebi, é mais uma questão de divertimento. Correr contra pessoas e placar é o que as nossas crianças acham divertido. O fator medo pode existir num rapaz novo, inseguro quanto à sua capacidade para parar outro tipo, mas não é algo com o qual necessariamente temos de lidar.

Como é que um miúdo que começou a jogar ténis acaba a levantar a taça Webb Ellis?

É uma longa história, uma aventura. Andei em boas escolas, que me deram a oportunidade de jogar râguebi. Estava numa cidade onde se falava predominantemente Afrikaans e a escola inglesa onde estudava tinha um bom programa de râguebi. Tive a oportunidade de evoluir, ir para boas equipas de escola, de província, das seleções jovens e por aí fora. Tive muita sorte de estar nos sítios certos às horas certas. Sempre tive boas pessoas à minha volta, treinadores e familiares.

Em 2011, e talvez pela primeira vez, viram-se uns Springboks com um estilo assente numa defesa forte e não no jogo à mão, mais técnico. Preocuparam-se muito com isso?

Bem, a partir de 2004 tivemos que construir tudo de raiz. O nosso Mundial no ano anterior tinha sido muito pobre e tínhamos muito que evoluir. A primeira coisa que fizemos foi investir na nossa cultura de equipa, o conhecimento que tínhamos de nós próprios e das nossas diferenças. Percebemos que, para o fazermos, tínhamos de nos respeitar, que ser honestos, acima de tudo, e trabalhar muito. E a defesa é isso: ser honesto com o teu grupo. É uma forma de cada um medir o quanto respeita o grupo, como uma unidade. Isso tornou-se muito importante para nós. Queríamos que os adversários sentissem que era muito difícil jogar contra nós. O que, realmente, veio a ser.

É difícil conseguir isso?

Ainda me lembro que, numa das conversas que tivemos antes, quando discutimos como iríamos abordar esse Mundial, decidimos que quando nos pressionassem nos jogos mais difíceis, não poderíamos largar os adversários. Teríamos que placar até não conseguirem respirar. Muitos dos ensaios que marcámos no Mundial vieram de turnovers [quando a equipa recupera a bola], não de jogadas estruturadas.

Ter jogadores como tu, o Shalk Burger ou o Victor Matfield no pack de avançados também ajudou.

Gosto de pensar que sim [ri-se, bastante].

Ainda te lembras do momento em que te disseram que ias ser capitão dos Springboks?

Sim. O Jake [White, selecionador da África do Sul] ligou-me para irmos tomar um café em Sandton [em Joanesburgo] e fiquei deslumbrado. Era muito novo, tinha uns 25 ou 26 anos, o que não é normal para um capitão dos Springboks. Fiquei muito nervoso, mesmo. As pessoas têm de viver na África do Sul para entenderem a responsabilidade que o cargo exige [ri-se, quase como um desabafo], porque isto muda a tua vida. Quando aceitas não estás a dizer que sim apenas por ti, mas pela tua mulher, os teus filhos, familiares, toda a gente. Vais na rua e vês cartazes com a tua cara e o teu nome, és tu que apareces para o bem e para o mal. Mas não mudaria nada, ainda me sinto abençoado.

E do Mundial de 1995?

Claro, estava lá, mesmo nas bancadas do Ellis Park [estádio em Joanesburgo, onde se jogou a final] com os meus amigos. Saímos da escola em Pretoria e fomos diretos para lá. O Boeing voou mesmo por cima de nós, foi de loucos. Um momento muito especial.

Já tinhas a certeza que querias ser um jogador de râguebi profissional?

O jogo ainda não era profissional, não te esqueças. Claro que queria jogar râguebi, adorava. O meu último ano na escola foi em 1996 e o râguebi tornou-se profissional um ano antes, portanto fui da primeira geração de profissionais.

Foste dos primeiros a ganhar dinheiro a sério, portanto.

Quando estava a terminar a escola, um tipo chegou-se ao pé de mim e disse: ‘Olha, queres jogar râguebi por dinheiro?’ E eu: ‘O quê?’. Quando tinha 18 anos comecei a ser pago, mesmo após sair da escola. Fomos os bebés do râguebi profissional.

Retiraste-te em 2013. Tens saudades de jogar?

Joguei durante 15 anos e ainda tenho muito râguebi dentro de mim. Adoro o jogo e tive uma transição espetacular quando deixei de jogar. Tenho andado sempre ocupado. Mas nunca tive um momento em que pensei: ‘Quem me dera voltar’. Amei o que fiz e desfrutei muito do meu último jogo. O râguebi sempre me deu alegria.

john smit,

Foto: Hugo Amaral/Observador

Estás ansioso para sábado [4 de junho]?

Até estou nervoso, não toco numa bola há três anos! Sei que vou partir alguma coisa, o ombro ou algo parecido.

O teu corpo agradece-te todos os dias desde que deixaste de jogar?

Sim, mesmo. Antes, quando jogava, saía da cama devagar, com calma, assim [flete um pouco os joelhos e começa a andar de lado]. Costumava ser como um avô [mais uns risos]. Quando chegar aos 50 talvez comece a sentir coisas nas costas e nos joelhos, vamos ver.