Os canhotos, no futebol, são — como chamá-los? — diferentes. Ou melhor: melhores. E são-no porque tratam a bola com mais proximidade que os destros. Uma “proximidade” que é literal; colam-na nas botas e ninguém mais sente (ou “cheira”, tão pouco) a redondinha em volta. Maradona era canhoto — e isso, por si só, é razão suficiente para que esta afirmação, crua, discutível, deixe de o ser. Ponto. Também os há, claro, que são canhotos e têm a delicadeza de um lenhador (perdoem-me os lenhadores) a jogar. E também os há, que nem canhotos são, mas usam-se daquele pé, teoricamente “cego”, com tanta ou mais qualidade do que muitos Maradonas de machado na mão, barbudos e camisas aos quadradinhos.

Payet. Dimitri Payet. Ele não nasceu canhoto, não senhor. Mas tratou de treinar aquele pé, desde a meninice no Saint-Philippe, e quase não se dá pela diferença se puxa de uma bota ou de outra, na hora de rematar, de passar ou de receber a bola. Falemos dele. E falemos do França-Roménia. O jogo arrastava-se para o fim. Faltava pouco. A Roménia defendia com todos — e defendia bem. A França procurava atacar, também o procurava com todos, não queria empatar no primeiro jogo do Euro que ela própria organiza, mas não havia maneira de acertar com a baliza. Com a direção da baliza. Sacré bleu!

Por tanta gente que Deschamps fizesse entrar (de Martial a Coman) na hora do sufoco, não se desatava o nó do empate e, pior ainda, amarrava-o cada vez mais os franceses. Muitos cruzamentos para a molhada que se acotovelva na área, correrias mais ainda — e sabe Deus para onde –, pouco ou nenhum acerto. Então, Payet, o melhor em campo até aí, o mais clarividente quando esta escasseava (a clarividência, entenda-se) nos demais, viu Kanté recuperar uma bola à Roménia, uma bola que lhe endossaria em seguida. Payet recebeu-a (88′) na bota direita. Estava à entrada da área, talvez a um metro desta, mas também estava de costas para a baliza e ligeiramente descaído para a direita. Com um toque, brevíssimo, subtil na bola, livrou-se do romeno que lhe mordia os calcanhares e com isso livrou-se, também, do problema de estar de costas para a baliza. Ficou de frente. Mas ainda se via descaído para a direita. Demasiadamente. E quando assim é, pede-se um remate de pé esquerdo. E puxadinho ao poste contrário se possível.

Foi o que Payet fez. Ele não é propriamente um matulão, corre até ligeiramente curvado sobre a bola, pelo que, depois de rematar, quase rodopiou no ar e sobre si próprio, erguendo os dois pés da relva. A bola, essa, saiu como Payet queria que saísse: puxadinha. Ao ângulo superior direito da baliza de Tatarusanu, que é guarda-redes, romeno e enorme, mas nem voando chegava àquela bola. Estava ligeiramente agachado e agachado ficou, a vê-la ir. Golo. 2-1. E o encontro acabaria pouco depois disso.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No banco, Griezmann, que foi infeliz no jogo e falhou dois golos cantados (um dos remates só parou no poste romeno), levantou-se, aproximou-se da linha lateral, mesmo em frente ao banco, abriu os braços de ponta a ponta, no rosto via-se-lhe estupefação (ele conhece Payet, mas o golo foi de deixar a boca aberta até à mãe do próprio) e sorriu depois. Payet não sorriu. Chorou. Logo a seguir ao golo saiu, entrou Sissoko e Payet chorou muito. Seguia para a substituição, atravessou o relvado e, quanto mais limpava as lágrimas, mais estas lhe vinham aos olhos. Sentou-se no banco. Giroud abraçou-o. Sorriu-lhe. E Payet, entre um gole de água e outro, lá sorriu de volta. E depois chorou mais. Pelo golo que fez. Pela vitória que deu a uma França (não a seleção, mas o país) que não tinha mais unhas para roer esta noite.

Agora, neste vai e vem no cronómetro — a crónica a isso nos permite –, recuemos até ao primeiro golo (57′) da França.

Giroud não é Benzema. E mesmo os que concordam com a exclusão do segundo, apupam o primeiro. Falha. É ponta-de-lança, mas falha. É um mal-amado. Como só os pontas-de-lança são. Mas haveria de ser herói depois de 57′ a avilanar. Payet tentou assisti-lo vezes sem conta. A ele e a Griezmann. Mas nenhum acertava com a baliza – e quando acertava, Tatarusanu dizia presente. Quanto ao golo, Dimitri Payet deixou os rins de Rat feitos num oito, ameaçou que ia para fora, linha fora e cruzar de pé direito, mas o que fez foi dar meia volta, voltar atrás, seguir para dentro e cruzar de canhota. Um cruzamento redondinho. Giroud, que até aí falhara, saltou. E fechou os olhos na hora de cabecear. Tatarusanu, que até aí tinha tido uma exibição sem mácula, não fechou os olhos. Mas também não acertou com o lugar onde a bola ia cair, não a agarrou nem socou, e esta foi ter à cabeça do ponta-de-lança francês. Quando Giroud voltou a abrir os olhos, tinha marcado.

A Roménia ainda empatou (65′) num penálti — disparatado, diga-se — cometido por Evra. O lateral derrubou o dez Stanciu na área quando Sagna tinha o romeno mais do que no bolso. Na cobrança, Stancu (não é o mesmo que sofreu o penálti; o apelido é quase igual, mas falta-lhe o “i”) escolheu a direita, atirou para lá, e Llloris ficou-se pelo centro, sem sequer se mexer. Não valeu de nada aos romenos tanto suor a defender o empate. A canhota de Payet, que nem canhoto é, resolveu o jogo. A dois tempos e um pé só.