Hmm, estranho. Isto é uma estrada nacional, nem tem tiques de vedetismo de quem quer ser via rápida. Uma faixa para cada lado, alcatrão que fez dieta na largura, relva quase a comer espaço ao sítio onde os carros devem andar. Não é que esteja preocupado, mas dá que pensar. Na minha cabeça Saint-Étienne é uma cidade que impõe respeito, bate o pé em nome, tamanho, pessoas, futebol e escala. O que não me cabe aqui dentro é como já lá vai quase uma hora sem pisar autoestrada. É mau não ver sequer indicação que uma está perto de aparecer. Pior é isto acontecer não ao início, tão pouco no fim, mas a meio do caminho.

Tinha olhado para o mapa, cuscado a distância que aí vinha. “Grande estica”, penso, enquanto arrumo o pequeno T0 que arrasto às costas, em três mochilas. As contas da internet mostram que a distância entre Paris e Saint-Étienne varia entre 480 e 553 quilómetros em três hipóteses de curvas, rotundas, autoestradas diferentes. Olho de relance. É engraçado como hoje é difícil saber o que está no meio de dois sítios se os quisermos ligar em linha reta. Piada também tem o facto de a regra e o esquadro da UEFA intrometerem um jogo em Paris a meio de dois encontros em cidades separadas por 60 quilómetros — Saint-Étienne, onde Portugal joga com a Islândia, e Lyon, onde defronta a Hungria, são vizinhas.

Merci beaucoup.

Por nada, porque agora sinto-me perdido sem realmente o estar. À minha frente, colado ao vidro, está o pedaço de tecnologia que me safa e ao mesmo tempo me trama. Há quase uma hora que não aparece um carro. Nas quatro, cinco povoações que surgem, das que ladeiam a estreia, como se ela fosse referência para as pessoas assentarem poiso, não há pessoas na rua. Ninguém. O dia não se maquilhou, verdade, as nuvens não deixaram o céu azul vir cá para fora brincar. Mas é estranho. Não há pessoas, não há carros e nem há autoestrada nem noção de estar no caminho certo.

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Desligar do mundo não é ficar sem internet no telemóvel esperto, é sentir que estou perdido por culpa do GPS que não me devia perder. É mesmo estranho. Olho para ele, desconfiado, e noto que a estrada onde estou tem um nome, claro. Route de Lapalisse. Antes de acordar estava a dormir, antes de estar perdido não estava. É o nome o que se usa para redundâncias ou estupidezes como estas, evidências mais do que óbvias. Lapalissadas. Quem as batizou foi um marechal francês do século XVI, que não as dizia (Jacques de la Palisse), mas cujo nome ficou porque os militares fizeram um erro de fonética ao cantar em sua memória e fizeram asneiras.

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Desligo da partida que sinto que o GPS me pregou. Penso nisto e olho em volta. É bonito. Há verde em todo o lado, campos e árvores lutam pelo tom mais forte. As vacas são muitas, ou pastam ou se deitam, sempre brancas, sem manchas. A tranquilidade pasma. As casas são rústicas, há a ocasional quinta com o palacete que parece um castelo. Há pequenos bosques delimitados por muros, talvez resquícios da época em que os feudais que protegiam as terras. E a há a estrada que corta tudo isto como uma serpente que apenas sabe rastejar em curvas. Tudo isto é verdade.

Apenas se torna evidente e óbvio para mim quando, na cabeça, deixo de estar perdido. Deixa-te ir. Estás com um GPS, só podes estar bem. Rádio desligado. Entre a mota e o carro com os quais me cruzo no início disto e a avó que, à beira da estrada, segura um neto pela mão, ambos vestidos de branco, são quase cem quilómetros. Passo por Lapalisse, saio da bolha, deixo de estar perdido porque o aparelho me leva a um cruzamento com uma placa verde de via rápida. Ligo o rádio e aí as verdades aparecem todas.

Fala-se em francês da pancadaria do dia anterior em Marselha, entre adeptos (perdão, animais) ingleses e russos. Dizem que o mesmo se começa a ver no meio de alemães e ucranianos, em Lille. Elogiam o que o pé direito de Modric fez à Turquia, na partida que ainda se joga. Há tempo para o rumor de um clube chinês ter oferecido dois milhões de euros por mês a Edison Cavani, um jogador uruguaio que interessa por jogar no Paris Saint-Germain. “O que se faz a dois milhões de euros”, pergunta a locutora, estupefacta na voz. Tantas verdades e eu com a minha — ainda bem que saí da autoestrada para ver o que vi até ali.

Duas horas e pouco passam e Saint-Étienne chega. Foram quase seis até ali. Desligo o GPS, ligo-me à realidade, solto-me do carro, agarro-me ao portátil no hotel. Esta cidade, afinal, não bate o pé a grande coisa. Só é a 14.ª maior de França, não chega aos 180 mil habitantes, em tamanho parece ser mais do que tímida. A verdade aparece sempre, e há mais. O Hélder Postiga (2005/06) e o Paulo Machado (2008/09) que aqui jogaram.

A praça central da catedral, dos cafés grandes, dos largos de cimento e dos ecrãs gigantes, está vazia. Apanha menos de dez alemães no café mais frequentado, não aparecem mais para ver o Alemanha-Ucrânia. Há muito pouca gente no sítio da cidade onde deveria haver mais. A polícia tirou folga, os carros pedem licença para aparecer, o Europeu está a parar um país, mas ainda não parou aqui. Sinto-me mais perdido aqui do que no meio da Route de Lapalisse. Ainda bem que há outra verdade — Portugal vai trazer o Europeu para aqui na terça-feira, contra a Islândia.