“Queres ir ver o Itália-Bélgica? Consigo arranjar bilhetes.”

Não, brincas. Por que não hei-de ir? A pergunta é tão estúpida que nem me armo em respondão. O lado emocional leva a taça, o racional fica a ver navios. Mas, maroto, claro que vai moendo um pouco a cabeça, desfazendo os grãos até as conclusões saírem em pó. Estou no Estádio Geoffroy-Guichard, a preparação do Portugal-Islândia manda-me estar ali, e faço contas à vida. Lyon fica a mais ou menos 60 quilómetros de Saint-Étienne, o jogo é às 21h, tenho umas três horas para me por lá. Desconfio, claro, o trânsito francês não é de confiar, então em dia de Championnat d’Europe, muito menos. Mas vamos a isso, porque se Portugal passa em primeiro do grupo apanha quem ficar em segundo no grupo dos italianos e dos belgas (nota: penso assim antes do jogo contra a Islândia).

O bilhete ainda não me caiu no colo, vai cair por culpa de uma amizade de anos. Ele é italiano, anda por França a trabalhar para a UEFA, a competição está-lhe a dar cabelos brancos e faz pela vida para arranjar esta oportunidade de torcer em vez de ser torcido pelo trabalho. Arranja uma boleia desde Nice, a cinco horas de carro, e espera-me em Givors, vila que marca o meio caminho até Lyon. Comigo no carro está um francês com costela suíça, amigo do meu amigo que, por isso, meu amigo é. O carro já arca com os três quando, a uns 10 quilómetros do estádio, a autoestrada fica mentirosa. Tem três faixas, mas parece que estamos apertados pela rua de uma aldeia.

Andamos como caracóis durante quase uma hora. O tempo é chato e útil, os três queremos chegar rápido, mas gostamos da lentidão que põe a conversa em dia. Faz-se a revista ao Europeu, fala-se dos italianos com barbas e dos belgas imberbes que vão jogar. Praticamos o inglês. Estão na casa dos 20 e eles só podem ser eles porque a UEFA não os deixam falar com quem faz da vida escrever o que os outros dizem. Não estou ali como jornalista, estou como adepto. Como eles.

É a pensar como um que decidimos nem tentar conduzir até ao estádio, que é ao lado da autoestrada, na periferia de Lyon. Está um caos, falta hora e mais para a bola rolar e não vamos fazer nada do que queremos a tempo. Viramos à direita, somos desviados por uma rotunda, damos mais umas curvas e estamos entre uns supermercados e fábricas. A estrada é como o passeio, os peões não discriminam. Estamos fartos do carro, ansiosos por caminhar e vemos uma fila de carros ousados — estacionaram com duas rodas na estrada e duas no passeio, tortos. Está um polícia a um metro do espaço onde cabe mais um. Olhamos para ele, perguntamos o óbvio, ele acena.

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Duvido antes de o nosso carro ficar como os outros. Aquilo é estranho. A anuência do agente, o sítio escolhido, os passarinhos que a consciência faz piar na cabeça. Conto-lhes a preocupação e cai quase como um ultraje para o italiano. Refila, diz claro que sim, o lugar não é para desperdiçar, isto em Roma já cá cantava, é dia de jogo e não há problema — “Eles percebem e o polícia deixa”. Pronto, estacionado. Mas os pássaros piam alto, como se o sol tivesse acabado de raiar aqui dentro. Uns poucos minutos depois calam-se porque ficam encharcados. Há pessoas a caminhar na estrada, ziguezaguear entre carros, um pequeno caos organizado por ser dia de bola, quando a chuva que pingava miúda começa a cair com força.

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É torrencial, são potes de água, chovem cães e gatos, nem sei qual é a melhor expressão. Decidimos correr. O estádio em Lyon é moderno — inaugurado em janeiro de 2016 — e os acessos até são espaçosos, mas não damos mais de quatro passos sem termos que nos desviar de alguém. Estão ali espalhadas quase 60 mil pessoas. Olho mais para baixo do que para cima, vergado pela molha que apanhamos, sigo-os na corrida.

Chegamos à primeira linha de segurança, temos que parar e ficar uma presa fácil para a chuva. Não me apetece nada, penso, mas compreendo. Uma das pessoas chama-me, gesticula com ar apressado, entende a agonia de quem está desesperado por chegar ao estádio e encontrar abrigo. Corro, vou, paro. A pessoa baixa-se um pouco e nem dois segundo demora a tocar com as mãos nos bolsos da frente das minhas calças. “Merci” e manda-me seguir. Fico um pouco perplexo, nem arranco logo. Podia ter ali uma bomba, uma granada, umas facas, um pedaço de vidro, qualquer coisa, que a pessoa nem dava conta. Regresso à terra e à realidade da insegurança e arranco, volto a correr atrás deles.

Entramos no estádio e chegamos à bancada sem passar por mais revistas. Pergunto-lhes se foram mais auscultados que eu. Claro que não. Até sentarmos o rabo nos lugares é tudo ordeiro e calmo, falta cerca de meia hora para a bola rolar. O bilhete faz com que fique entre o italiano, meu amigo, e um grupo de quatro belgas. É perfeito, só não quero que eles percebem que têm ao lado um adepto de futebol que, nas horas vagas, é um jornalista (às vezes, é quase isto). Os belgas são francófonos, debitam “Allez Eden!” para o craque Hazard ou “Patate!” quando exigem remates a alguém que tenha a bola perto da área. Não torcem tanto por jogadores nascidos na parte flamenga do país. Mas isto não é uma seleção?

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O italiano tem mais molas na cadeira. Levanta, senta, pula, treme as pernas. Prefere o “búúú” ao assobio, a velha arma com que todo o adepto nasce. É cultura. Grita a pulmões o hino nacional, vibra quando os italianos querem arrancar um cântico, é tão frenético quanto os belgas são calmos e controlados. Assim, claro, ganha a Itália por 2-0 e mostra como a Bélgica com jogadores mais novos, mais talentosos, mais rápidos e com mais técnica, são tão desconectados entre eles como os adeptos ao meu lado parecem ser da seleção. Jogo feito, nada mais, vamos embora.

A circulação em torno do estádio até é ordeira e fácil, apenas se complica quando nos queremos afastar. O trânsito de pessoas afunila-se, às tantas parece uma procissão, demoramos uns 15 minutos até podermos andar ao ritmo que queremos. Caminhamos um quilómetro e tal e, de repente, tenho vontade de matar o italiano. A ele e a mim — o carro não está aqui. Desapareceu, como os outros que ousaram estacionar à moda de dia de jogo de futebol. Gesticulo, sai um sermão em português, digo palavras feias que ali ninguém entende, lamento-me a quente. O italiano nem aquece. O portátil, a chave do hotel e outras coisas estão no carro desaparecido. Calma, reage o italiano, “vamos encontrar a solução”.

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Não sou eu, muito menos ele, a descobri-la. É a língua do francês que está connosco que fala com polícias, pergunta a morada do parque de veículos rebocados e ficar a saber números para os quais telefonar. O GPS manda-nos andar quase quatro quilómetros e já caminhamos quando, ao fim de cinco chamadas, alguém lhe confirma: o carro está lá. Dizem-lhe um preço, é caro mas aceitável, alivia-nos um pouco. Mantemos o passo acelerado, o futebol não nos entra, partilhamos histórias más de viagens boas que cada um tem para contar. “Sabem, um amigo diz-me sempre que uma viagem não é boa se não acontecer alguma coisa”, diz um de nós. Concordamos com um riso partilhado.

O que já não nos faz rir é o valor que temos de pagar para nos devolveram as rodas. É quase o dobro do que nos diziam ao telefone. O francês refila, questiona, defende-se, argumenta, os polícias riem-se. Querem lá saber se um companheiro deles nos deixou estacionar. Dizem que é normal estas coisas acontecerem em dias de jogos e as dezenas de adeptos italianos que ali se encontram comprovam-no. A culpa é nossa, a matreirice é deles, a falta de bom-senso também, talvez.

E a falta de prudência foi do italiano, sobretudo dele, que ainda tem a lata de me dizer, por mensagem, que “ainda bem” que fui para “ver uma equipa séria” a jogar em Lyon, após o empate português com a Islândia. É mesmo sacana.