Projetos desenhados à mão, ainda os computadores eram uma miragem. Fotografias e maquetes com anotações. A carta de um cliente importante a acusar o arquiteto de “intransigência” no que toca a fazer alterações aos materiais. Estes são alguns dos objetos que fazem parte do arquivo de Álvaro Siza Vieira e que, desde esta quinta-feira, estão acessíveis ao público pela primeira vez, no Museu de Serralves.

Há cerca de seis meses, Serralves começou a receber no seu depósito milhares de documentos e plantas do arquivo, referentes a 40 projetos. “Matéria-Prima: um olhar sobre o arquivo de Siza Veira“, assim se chama a exposição, reúne materiais que ajudaram a conceber 27 das suas obras mais marcantes.

Tanto o depósito como a exposição moram num local também ele projetado pelo arquiteto premiado com um Prémio Pritzker em 1992. Presente na inauguração, Siza recordou a “satisfação” com que recebeu o convite para fazer o Museu de Serralves, a primeira grande obra pública que lhe foi encomendada. Em exposição está a carta que Teresa Gouveia, em 1989 Secretária de Estado da Cultura, enviou a Siza, por admirar “muito as soluções encontradas para o Museu Louisiana”, que o portuense havia feito em Copenhaga.

“Há projetos que não se realizam”, lamentou, acrescentando que essa é “a única memória má” do seu trabalho. “A maioria do que está nos arquivos, talvez 70 ou 80%, não são realizados por razões diferentes.” Às vezes por desentendimentos — “quando não há conflitos, quer dizer que o processo é pobre” — às vezes por falta de dinheiro, outras vezes por mudanças políticas. “Muda a maioria numa cidade e quem vem a seguir, se é de outra maioria, não quer aquele filho”, disse. Atualmente, há uma obra em risco: o equipamento Puerta Nueva, em Alhambra, Espanha. “Provavelmente não se fará por desinteligências políticas”, sublinhou.

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Para além dos documentos que estão nas mesas, ao longo da parede há fotografias de ateliê e de maquetes. © Filipe Braga / Serralves

Numa das mesas da exposição está o primeiro projeto que Siza viu tornar-se num espaço concreto, “quatro pequenas casas em Matosinhos. Que é feio, acho que é feio“, admitiu, bem-disposto. Feito entre 1954 e 1957, na altura foi alvo de polémica quando um jornal apresentou as casas como “a vergonha da terra”.

Entre 1960 e 1963 trabalhou para erguer a Cooperativa de Lordelo do Ouro. “Esse foi um dos projetos que acabou mal”, comentou o arquiteto. Os visitantes podem ver a carta da direção da cooperativa com algumas críticas. “Parece evidente a intransigência de V. Ex.ª a alterações sugeridas“. Mais: “Verifica-se que a realização das obras tem sido protelada por V. Ex.ª durante tempo considerado excessivo.”

Também estão lá alguns documentos da obra que transformou a Praça da Liberdade, no Porto. Um dos pormenores mais curiosos é a discussão em torno da estátua de D. Pedro IV a cavalo. “O que faz sentido é que o cavaleiro esteja a olhar para a Avenida, com o cu virado para a Câmara”, recordou Siza, sobre as intenções em colocar o cavalo virado para o edifício da Câmara Municipal.

Numa altura havia a ideia de que os meus arquivos iam todos para o estrangeiro. E não! Uma parte está aqui, uma grande parte está em Lisboa e isso satisfaz-me muito”, explicou. O arquivo encontra-se distribuído pelo Centro Canadiano de Arquitetura, em Montreal, no Canadá, (que Siza considera o melhor arquivo de arquitetura do mundo), pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e, desde há seis meses, por Serralves. A mostra é, aliás, organizada em conjunto pelas três instituições.

As 27 obras reunidas na biblioteca do Museu vão permitir aos visitantes terem “o conhecimento de como nasce a arquitetura”, seja um nascimento bom ou mau. Porque “isso depende não só de um arquiteto, mas sim do trabalho de equipa”, desde os engenheiros aos construtores, passando pelo cliente. “Podemos entrar na inteligência de Siza“, resumiu Suzanne Cotter, diretora do museu.

Comissariada pelo arquiteto André Tavares, a mostra pode ser visitada até 18 de setembro e é o ponto de partida de um programa de exposições, debates e eventos dedicados à arquitetura contemporânea. A atenção dada à arquitetura pelos museus de arte contemporânea é “usual” nos dias que correm, disse Siza Vieira. “Há uns anos era impossível pensar nisso porque a arquitetura sempre foi considerada uma filha menor das artes.” Ou até mesmo “uma não arte”, recordou. “Isto abre portas para o que eu espero que seja o crescimento deste arquivo, não voltado só para a obra minha mas para a de outros arquitetos.”