Dantes, no tempo do musical clássico de Hollywood e dos filmes de adolescentes bem-comportados com Mickey Rooney e Judy Garland, havia um subgénero onde um grupo de miúdos do liceu montava um espetáculo para exibir os seus talentos a cantar e a dançar, e para impressionar os adultos. Com o advento do pop/rock, esses filmes continuaram a ser feitos, mas agora os adolescentes já não querem saber de musicais. Querem é ter uma banda. E pelas mais variadas razões: para mostrarem que são “rebeldes”, porque desejam ser famosos e ricos, porque se sentem postos à margem e a música é uma maneira de serem aceites, ou muito simplesmente porque são talentosos e juntam-se todos para tocar a música de que gostam. Incluem-se neste subgénero dos chamados “let’s form a band movies” fitas como “Os Commitments”, de Alan Parker (1991), “Escola de Rock”, de Richard Linklater (2003) ou o imperdível “Bandslam”, de Todd Graff (2009), que em português teve o título assassino de “Will — Uma História de Preseverança”.
[Veja o “trailer” de “Sing Street”]
https://youtu.be/C_YqJ_aimkM
A estes, junta-se agora uma pequena jóia irlandesa chamada “Sing Street”, realizada por John Carney, um músico que também faz cinema, e que já assinou pelo menos dois filmes muito bons sobre gente da música e sobre a maneira como a música é fundamental nas suas vidas: “No Mesmo Tom” (2007), que ganhou o Óscar de Melhor Canção, e “Num Outro Tom” (2013). Em “Sing Street”, Carney regressa à Dublin de “No Mesmo Tom”, mas agora nos anos 80 da sua própria adolescência, quando a Irlanda atravessava uma séria crise económica, a que o jovem Conor (Ferdia Walsh-Peelo), o herói do filme, e a sua família, apesar do seu estatuto de classe média desafogada, também não escapam. Ainda por cima, o casamento dos pais está a desfazer-se à vista de Conor e dos seus dois irmãos.
[Veja a entrevista com o realizador John Carney]
Por falta de dinheiro para pagar a escola particular que Conor frequenta, os pais recambiam-no para um colégio de padres que já viu melhores dias em termos de exigência educativa, pedagogia e qualidade das instalações. Perseguido pelo “skinhead” residente e marcado pelo padre diretor, infeliz e desambientado, Conor, que escreve canções, decide ir à procura de outros como ele, e que de preferência saibam tocar instrumentos, e formar uma banda. Tudo para impressionar Raphina (Lucy Boynton), a miúda misteriosa e bonita do lar de raparigas do outro lado da rua da escola, que não fala com rapazes e quer ir para Londres ser modelo. E que Conor, nem ele sabe como, conseguiu convencer a entrar no primeiro teledisco da sua ainda não-existente banda.
[Veja a entrevista com os actores Lucy Boynton e Ferdia Walsh-Peelo]
O que se segue é um filme que se vê como se ouve uma boa canção pop “feliz-triste”, na definição dada por Raphina a certa altura. Conor junta uma série de “cromos” da escola que tocam (e bem) os instrumentos necessários para fazer um grupo, e arranja um talentoso aliado e um simbiótico parceiro de escrita de canções no caixa de óculos Eamon (Mark McKenna), o filho de um cantor de uma banda de “covers”, que toca todos os instrumentos possíveis e imaginários, sabe música e coleciona coelhos. E eis os Sing Street (uma referência à Synge Street onde se situa a escola), que até têm um empresário e realizador de telediscos (o minorca que não toca nada mas tem visão comercial) e uma rapariga bonita para dar nas vistas nos mesmos (a filmagem do primeiro, num beco sujo, com os membros da banda vestidos das maneiras mais insólitas, é um dos momentos altos cómicos de “Sing Street”). Falta uma identidade para a banda, determinada por Brendan, irmão mais velho de Conor, seu mentor musical e admirador dos Duran Duran, e que fica definitivamente estabelecida como “futurista”.
[Veja o “teledisco” dos Sing Street]
https://youtu.be/S8VtbULzJTU
Para os seus membros, os Sing Street servem para fugir ao ambiente do colégio, aos problemas familiares, a uma situação social deprimente, e, quem sabe, conseguir um mirífico contrato discográfico que os tire da Irlanda e os leve para Inglaterra, e à fama. E a Conor serve também para tentar conquistar Raphina (um filme de adolescentes e música pop sem uma história de amor é como um pastel de nata só com massa). John Carney também assina as canções, em colaboração com um grupo de músicos irlandeses veteranos, e além de serem bons “pastiches” do som pop britânico (e algum americano) da década de 80, aconchegam-se logo aos pavilhões auditivos e acionam um suave efeito de nostalgia desses tempos e dos seus “top ten”.
[Veja cenas do filme e ouça uma das canções da banda]
O realizador está do lado das jovens personagens e dos seus anseios (a fita tem um elemento autobiográfico, pois Carney nasceu em Dublin, andou naquele mesmo colégio e pertenceu a uma banda na adolescência) e compreende a importância fundamental da música nesta altura das suas vidas. A história de “Sing Street” tem aquele realismo imediato e tangível bem característico do cinema britânico, sem forçar o lado “social” nem o melaço emocional, com pinceladas de fantasia (a sequência imaginada por Conor no baile de liceu “à americana”), e John Carney filma com o equivalente visual e emocional do espírito das canções pop/rock da banda sonora. “Last but not least”, há o elenco de jovens atores desconhecidos vivendo personagens instantaneamente simpáticas e empáticas, trabalhando numa afinação coletiva tão contagiantes como a da banda que formam, e que juntamente com a música estala-dedos e namora-ouvidos, são a cola deste filme pop “feliz-triste” tão conseguido, que até o final esperançoso não soa a fífia.