O Verão já encontrou o seu livro: À Espera de Bojangles, de Olivier Bourdeaut, editado em Portugal pela Guerra&Paz. Quem fala do período estival poderia dizer outro tempo mas o Verão está aí e é de aproveitá-lo para as leituras mais certeiras. Em França, En Attendant Bojangles foi, segundo o Figaro, “o sucesso literário francês do Inverno”, contando, passados apenas três meses da sua edição, mais de 80 mil exemplares vendidos.
Mas o que é que faz deste livro de um estreante, nascido em 1980, editado por uma pequena editora (a editions Finitude), um fenómeno? Arrisque-se uma formulação: porque se trata um gin literário. Não daqueles que se tomam só porque fica bem erguer o copo para a câmara do iphone. Toma-se porque sabe bem, porque apela à farra da vida, porque celebra a felicidade, a loucura, o humor. Tudo isto nesse território habitualmente lúgubre chamado romance.
Talvez seja essa improvável alegria que o tenha tornado um acontecimento em França, replicado agora por outros países. A publicação Le Magazine Littéraire, em Junho, chama-o “A surpresa Bojangles”. Com o subtítulo: o romance de Olivier Bourdeaut embala os franceses. Há uma família no centro da narrativa. Comunidade nada normativa, vista através do olhar de um filho que a vai descobrindo na sua originalidade à medida que cresce. Os resultados da sua pesquisa começam com esta frase: “O meu pai tinha-me dito que, antes de eu nascer, a sua profissão era caçar moscas com um arpão”. Assim nasce este arvoredo de pequenos delírios. A informação sobre o ofício paterno é logo aprofundada: tornou-se depois um “abridor de garagens”, seja o que isso for. A maneira como os pais se dirigiam um ao outro também saía dos regulamentos: “Nunca percebi bem porquê, mas o meu pai nunca tratava a minha mãe pelo mesmo nome mais de dois dias seguidos”.
E a mãe, como era? Se o pai era um excêntrico, a mãe era a mais extravagante das figuras, inimaginável tratado humano de fugir de normas e portarias. “Maravilhava-se com tudo, achava divertidíssimo o progresso do mundo e acompanhava-o saltitando alegremente”. Para a descrição do seu dia, o filho era desafiado não a discorrer sobre tristes banalidades mas sim a edificar as mais doidas fantasias. Ah, e ainda havia um quarto elemento em casa: uma ave elegante de pescoço negro, penas brancas e olhos vermelhos chamada Menina Sem Préstimo.
O(s) passo(s) certo(s)
A grande protagonista deste livro é a dança. O palavreado é dança, a história é dança. A actividade preferida também. “Os meus pais estavam sempre a dançar, em todo o lado”, conta o narrador-protagonista, cuja voz é intercalada com a visão paterna dos dias. Os pais estavam sempre em terno bailarico doméstico, sozinhos ou com amigos, pela manhã ou à noite. “Atiravam tudo ao chão por onde quer que passassem”. Olivier Bourdeaut conta, em entrevista dada por email, que celebra a dança por permitir uma evasão, um abandono físico e mental, “uma outra forma de ocupar o espaço e o tempo”. A dança é uma espécie de desmaio. “Quando dançamos não pensamos nas nossas dívidas, por exemplo”. Aí está um bom motivo para a coreografia.
A dançar também não se pensa em literatura como gesto solene. Ninguém o aguarde em “À Espera de Bojangles”, divertimento maior, criado com swing, um decisivo ingrediente melancólico e uma linguagem bailante e sem complexos. “Sempre que posso tento olhar a vida e os seus dramas com humor. Nem sempre é simples. Prefiro fazer rir os meus próximos com as minhas questões do que fazê-los chorar”. Quanto à melancolia, Olivier sente-a como um estado no qual gosta de mergulhar enquanto ouve, por exemplo, uma canção. “Mas eu não sou naturalmente melancólico”.
“Mr. Bojangles”, a banda sonora que atravessa o romance, podia ser essa canção. Uma canção com a sua doce tristeza mas que apela à possibilidade, lembrando outra, de a dançar a gente se poder deixar levar. “Descobri-a quinze dias antes de começar a escrever. Andava pelas ruas de Paris, o céu estava cinzento, fazia frio e o ambiente era sinistro. E se é verdade que esta canção não é francamente alegre, encontrei qualquer coisa de reconfortante na voz quente de Nina Simone”. A música ficou em Olivier e resolveu fazer dela o hino familiar.
Livros filmados
Há também aqui qualquer coisa de cinema, qualquer coisa de filme de animação. Na contracapa do livro a sentença faz bastante sentido depois de trilhar estas 193 páginas: “O optimismo das comédias de Frank Capra, aliado à fantasia da ‘Espuma dos Dias’, de Boris Vian”. Bourdeaut nega a filiação Vianesca mas há de facto uma melodia jazzística comum. Procura antes outras referências:
Antes de me sentar à mesa de trabalho tinha na cabeça as imagens do livro de Truman Capote Petit Déjeuner Chez Tiffany (Breakfast at Tiffany’s, sim). E a sua adaptação ao cinema. Os ambientes de festa, a ligeireza, a elegância e o charme da heroína Holly Golightly”.
Sopra em À Espera de Bojangles uma insensatez filosófica, ouve-se um sapateado de loucura neste chão. “Mais do que a defesa da loucura, que é um drama, reivindico uma ode à fantasia. São precisos 90% de pessoas pragmáticas sobre o planeta para que este gire normalmente. Mas também são necessários 10% de pessoas originais para fazerem sonhar os outros!”.
Ao contrário do que acontece numa generosa parte da literatura (e de outros géneros narrativos), aqui joga-se a possibilidade da felicidade em família. Olivier olha o gesto como sendo natural. “Comecei a escrever com a pena e através dos olhos de uma criança que vê os seus pais a amarem-se loucamente e a viverem em felicidade”. E, em nenhum momento, sentiu a necessidade de mudar essa maneira de estar e de sentir.
Enquanto escreve o segundo romance, Olivier celebra os desafios para as adaptações cinematográficas e as traduções. No caso, a portuguesa. Faz tempo, conta, que, inspirado por fotografias da paisagem, quer vir a Portugal com os amigos. Ser traduzido na língua portuguesa é uma forma de se encontrar com os portugueses antes de pisar o nosso solo. Fica a sugestão de o acolhermos já como festivos e curiosos leitores.
Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.