Já ouviu falar da Lonelygirl15? Foi o primeiro fenómeno viral do YouTube. Esta quinta-feira completaram-se dez anos sobre o primeiro vídeo publicado no canal que já foi o mais subscrito daquela plataforma. E de repente, dez anos depois, todos os que já nem se lembravam de ter subscrito o canal receberam uma notificação a dizer que havia… novo vídeo.

A história da Lonelygirl15

A 16 de junho de 2006, era publicado o primeiro vídeo-blogue de Bree, uma rapariga de 16 anos que tinha aulas em casa, poucos amigos e passava o dia em casa na internet, a fazer trabalhos de casa e a conviver com o seu único amigo, Daniel. Rapidamente, os vídeos de Bree começaram a ganhar sucesso e Lonelygirl15 tornou-se um dos mais famosos canais do YouTube.

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Mas todo este sucesso — as centenas de fãs, os pedidos de amizade na internet e os vídeos com milhões de visualizações — estava assente num grande segredo: Bree não existia. Toda a história era escrita por argumentistas, interpretada por atores e gerida por profissionais.

O The Guardian conta a história. Tudo começou quando Miles Beckett encontrou o vídeo “Lazy Sunday” no Myspace. Foi a partir desse vídeo que a história foi parar ao YouTube pela primeira vez. E ficou fascinado com os resultados. Pouco tempo depois, Beckett interrogou-se sobre se seria possível distinguir o real do falso. É que toda a gente pode comprar uma webcam e colocar o que quiser online.

Foi nesse momento que pensou: “Seria muito porreiro se houvesse um vídeo-blogger que contasse a sua história como se fosse um programa de TV”. Numa noite de karaoke em Los Angeles, conheceu Mesh Flinders, a quem contou a ideia. Em poucos dias, começaram a escrever o guião, e em duas semanas tinham o enredo pronto para os primeiros três meses de vídeos.

Decidiram-se rapidamente por uma história: a protagonista, Bree, de 16 anos e com poucos amigos, passaria os dias na internet, a fazer trabalhos de casa e a conviver com o seu único amigo, Daniel. É uma vida com que Flinders se identifica. “Não vi o mundo exterior até ter 14 ou 15 anos. Por isso, sabia como uma rapariga que teve escola em casa durante toda a vida seria, porque eu também era assim”, contou Flinders ao The Guardian.

O mais importante para os dois criadores era as pessoas acreditarem que Bree era real. Passaram algum tempo a estudar os principais “YouTubers” para perceber como falavam e que tipo de vídeos faziam, etc. Criaram a Lonelygirl15 para parecer o mais autêntica possível.

Rapidamente, encontraram quem tratasse de toda a parte jurídica do projeto. O advogado Greg Goodfried, amigo dos criadores, ficou responsável por essa parte. A sua mulher, Amanda, que trabalhava na Creative Artists’ Agency (CAA), ficou responsável pela página do Myspace de Bree.

Depois de criarem a ideia e de escreverem o guião, era necessário arranjar os atores para interpretar os papéis. Lançaram um anúncio na Craigslist para uma audição em Los Angeles. Queriam encontrar uma atriz maior de idade que parecesse ter 14 ou 15 anos e que não fosse reconhecida. Jessica Lee Rose encontrou o anúncio, inscreveu-se, mas por pouco ia perdendo a audição. “Não estava familiarizada com o trânsito em Los Angeles. Quase não tive tempo para lá chegar, e estive para ligar a dizer que não ia conseguir”, contou a atriz. Mas chegou e ficou com o papel. Apesar de ter 19 anos na altura, foi fácil fazê-la parecer que tinha 16.

Para o papel de Daniel, o melhor amigo de Bree, foi chamado Yousef Aby-Tale, um empregado de mesa que se tinha mudado para Los Angeles no ano anterior. Os criadores contam que ele foi o único a aparecer na audição sem estar demasiado bem vestido. Foi esse ar meio desleixado que lhe deu o papel de Daniel.

Uma história suspeita

Nenhum deles sabia o que era verdadeiramente o projeto. Quando Yousef descobriu, não se importou. Para ele, qualquer oportunidade era excelente. Já Rose, acabada de chegar a Los Angeles na esperança de arranjar um bom papel num filme, ficou desiludida. “Percebi que não era um filme, e descobri que iria estar na internet. Pensei que era um esquema, que era sobre isto que me avisavam antes de vir para Los Angeles”.

Na altura, a ideia de “webseries” não existia, nem se pensava que seria possível fazer dinheiro com o YouTube. Rose até tinha medo. Na verdade, o que mais existia na internet era pornografia. Mas ambos acabaram por aceitar. O primeiro passo foi eliminar todas as contas que tinham em nome pessoal.

O primeiro vídeo foi feito no quarto de Flinders. Compraram tralha na Target e transformaram-no num quarto típico de adolescente.

Enquanto Rose ia filmando os vídeos, seguindo as fórmulas usadas pelos bloggers que já trabalhavam naquele campeonato, Miles Beckett desesperava por conhecer o funcionamento do YouTube. O objetivo era fazer os vídeos chegar aos tops e dominar a internet. A primeira vitória foi quando perceberam que um dos parâmetros de classificação do YouTube era o número de comentários. Fizeram comentários em todos os vídeos, responderam a todos os comentários que tinham e queriam fazer o vídeo chegar, pelo menos, aos mais comentados. A partir daí, ganharam visualizações e conseguiram chegar aos mais vistos do mês.

A seguir, descobriram a importância do freeze frame. Um freeze frame é o fotograma que aparece nas miniaturas do vídeo em que podemos carregar. Mesh Flinders explicou que “Miles descobriu o algoritmo [que o YouTube usa para escolher o fotograma a apresentar], e a partir daí conseguíamos escolher o freeze frame que quiséssemos. Podíamos mostrar uma imagem que estivesse ligada ao tema do episódio”. E parece que esta imagem é mesmo importante num vídeo. “Se tivesse um bom freeze frame, tinha mais de 100 mil visualizações”, disse Mesh.

A Lonelygirl15 rapidamente começou a aparecer na secção dos vídeos mais vistos do site. Havia um vídeo de Bree online de dois em dois dias. Duas semanas depois do primeiro vídeo, o episódio “My Parents Suck”, publicado no feriado de 4 de julho, teve 50 mil visualizações em duas horas. Por essa altura, os vídeos da Lonelygirl15 já chegavam a ter meio milhão de visitas numa semana. “Muito mais pessoas seguiam a Bree e interagiam com ela no YouTube do que aquelas que estariam interessadas em ir ver um filme ao cinema”, conta Flinders.

“Não achei que durasse tanto tempo como durou”, revela Beckett. A Lonelygirl15 tornou-se no canal com mais subscritores do YouTube e começaram a surgir as “outras” questões. Com tantos pormenores complicados na vida de Bree, especialmente a relação com Daniel e a religião estranha dos pais, os fãs começaram a discutir teorias. Dizia-se que todo o enredo poderia ser uma promoção a um filme de terror, ou então um anúncio para alguma marca.

Os segredos

A rapariga estava a tornar-se um mistério e muitos jornalistas tentaram descobrir a história por trás daquele sucesso. Mas Beckett e Flinders conseguiram manter-se sempre um passo à frente e, em última análise, o mistério só aumentou o alcance dos vídeos.

Fãs com mais conhecimentos informáticos conseguiram seguir o IP de mensagens enviadas no Myspace de Bree, e entregaram a investigação ao LA Times. Quem geria os contactos era Amanda Goodfried, a partir do seu local de trabalho na CAA. E o jornal publicou uma investigação em que revelava possíveis ligações entre os vídeos e uma eventual “máquina de marketing gigante”.

O pior foi quando um fã mais empenhado encontrou a página antiga do Myspace de Rose. Foi aí que a verdadeira identidade da Lonelygirl15 foi exposta ao mundo. Jessica Lee Rose ficou em pânico. Beckett teve de falar com jornais e os criadores dos vídeos de Bree organizaram uma conferência de imprensa para anunciar a verdade. O fenómeno ainda durou depois da revelação. Rose gravou durante mais um ano e Abu-Taleb ainda fez mais 400 episódios.

Rose deu uma entrevista ao The Guardian recentemente, em que reconheceu: “Adorei a personagem. Tenho saudades da Bree e daquele mundo”.

Todos os criadores disseram ao jornal britânico que não existiriam continuações da história da Bree. Mas esta quinta-feira, dia em que se completaram dez anos sobre a publicação do primeiro vídeo, apareceu no YouTube um novo vídeo.

De repente, a história da religião misteriosa voltou. “Prometo que, em breve, teremos muito que falar. Mas por agora, isto deve chegar para vos manter ocupados”, diz a descrição do vídeo, que vem assinada por “M”. Uma nova série escrita por Miles Beckett?