José Martins, ou só “Martins”, foi a maior referência do plantel do Estoril na década de 1990. Era defesa central, daqueles limpinhos e pouco duros — como Fernando Santos o foi nos seus tempos de futebolista, também no estádio da Amoreira –, loirinho, de cabelo à tigela, capitão do clube quando este subiu à I Divisão, em 1991, e um profundo conhecedor do atual selecionador nacional. E conhecedor desde cedo.

Fernando Santos foi seu colega de equipa no Estoril quando Martins ainda tinha 19 anos e ele, Fernando Santos, era um trintão prestes a pendurar as botas. Mas também foi, pouco depois, treinador de Martins. Durante sete anos. Ao Observador, conta quem era o homem que, com um plantel de miúdos, ascendeu o Estoril ao patamar dos melhores em Portugal. Um motivador de homens. Um conciliador. Mas que também sabia castigar com “tareias” os futebolistas quando estes faziam o que não deviam.

Depois do inesperado empate com a Islândia no primeiro jogo do Euro 2016, Fernando Santos vai mesmo ter de recorrer a toda essa motivação que Martins elogia, toda essa conciliação de que é capaz, para que a seleção leve de vencida a Áustria este sábado.

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O José Martins e o Fernando Santos ainda jogaram juntos no Estoril na época de 1986/1987. Ele tinha 32 anos, você 19. O Fernando era titular, claro. Mas o José, sendo defesa central — que é uma posição que exige maturidade em campo — e tão novo, treinava com ele mais do que jogava, não?
Eu comecei a treinar com os seniores do Estoril quando ainda tinha 17 ou 18 anos. Era o Mário Wilson o treinador. Mas em 1986 subi mesmo à primeira equipa. Joguei pouco. O Fernando já lá andava aos anos, sim. Mas ele próprio, nessa altura, já trintão, também jogava cada vez menos vezes.

O Fernando Santos era defesa central.
Ele era tudo: central, defesa esquerdo, defesa direito.

Como é que ele era como futebolista? Era um defesa como o Ricardo Carvalho, mais delicado, ou como o Pepe, mais duro?
Quando eu estava nas camadas jovens do Estoril, como jogava e treinava pelos juvenis e pelos juniores, não ia ver muitos jogos à Amoreira. Só o comecei a ver jogar quando cheguei aos seniores e treinava com ele. Ele era mais Ricardo Carvalho do que Pepe, disso não tenho dúvida. Era rápido, o Fernando. Apesar da idade, era rápido. E muito inteligente nas abordagens aos lances. Sempre certinho. Mas tecnicamente não era nenhum prodígio; era razoável, vá. Nada do outro mundo. Como era um homem alto, ganhava muitas bolas aéreas. Mas do que mais me lembro dele como jogador é a discrição. Era discreto na altura como é hoje. Lá está: como o Ricardo Carvalho.

Ele na época de 1986/1987, quando o José Martins subiu definitivamente aos seniores, já era treinador adjunto do António Fidalgo. Mas ainda jogava. Já se sentia em campo que ele tinha perfil de treinador? Era um líder?
Ele nessa época quase não jogou. Já era mais treinador do que jogador. O Fidalgo e o Fernando nesse ano apanharam uma fornada de jogadores vindos dos juniores, onde eu me incluía, que seria a base da equipa que subiria à I Divisão passados uns anos. Mas sim, no Fernando, quando ainda só era jogador, já se notava que viria a ser treinador. Ninguém tinha dúvidas. Os colegas respeitavam-no muito. Ouviam-no. Ele sempre teve um trato muito fácil. Não era daqueles treinadores que precisam de gritar para se fazer ouvir. Psicologicamente, ele era um líder. E no relvado já demonstrava uma esperteza tática que lhe seria útil enquanto treinador.

Na temporada seguinte, 1987/1988, o António Fidalgo deixa o Estoril em dezembro, assumindo o Fernando Santos o cargo de treinador principal nessa altura. Para os jogadores que, como o Martins, tinham sido colegas dele em campo, foi fácil aceitá-lo com treinador? Ou ainda o viam como colega?
Foi fácil, foi muito fácil. Como treinador ele não criou uma distância com os jogadores. Era a mesma pessoa que tinha sido como jogador. Ele respeitava-nos, nós respeitávamo-lo. Quase nem se notou essa passagem de jogador a treinador. E como o plantel era muito novo, quase todos na casa dos vinte anos, e sendo ele um homem, só tínhamos era que aceitar o que ele nos dizia.

O Fernando Santos, enquanto ainda era jogador no Estoril, tinha alguma alcunha?
Tinha, tinha. Todos tinham. Ele, como era engenheiro de profissão, chamávamos-lhe o “engenhocas”.

É verdade, o Fernando Santos tinha duas profissões: era treinador no Estoril e engenheiro no Hotel Palácio. Ele chegava atrasado aos treinos por causa disso?
Poucas vezes. Mas às vezes lá se atrasava no hotel e só chegava no fim do treino. Era o adjunto, o Luís Roquete, quem dava o treino. Mas ele sempre conseguiu conciliar bem as duas profissões.

Recorda-se de alguma história engraçada do Fernando Santos no balneário?
Hmmm
, são tantas. Eu fui treinado pelo Fernando durante sete anos. Fui muitas vezes a casa dele jantar, jogávamos às cartas — ainda hoje ele gosta de jogar às cartas. E ele era muito descuidado com a roupa. Nós às vezes até nos ríamos da roupa que ele trazia. Mas uma história engraçada, engraçada, lembro-me de uma. Um dia, antes do treino, alguém escondeu as chaves do posto médico. E quem as escondeu, trancou-o. O Fernando Santos chegou ao balneário e perguntou-me — como era eu o capitão — onde é que estavam as chaves. Respondi-lhe que não sabia. Ele saiu e só voltou passados cinco minutos. E voltou a perguntar-me pelas chaves. Mas eu não sabia — e mesmo que soubesse, não lhe dizia quem as tinha escondido; éramos uma equipa muito unida. Como ninguém se descoseu, ele levou-nos para as bancadas do estádio e deu-nos uma valente “tareia”. Estivemos uma hora a subir e a descer as escadas. E ele ia perguntando: “Onde é que estão as chaves?” E eu respondia: “Não lhe digo nem que me mate!” Até que ele lá desistiu da “tareia” e ainda nos elogiou o espírito de grupo.

fernando santos plantel estoril 1990/1991

O plantel do Estoril que em 1990/1991 subiu à I Divisão. Fernando Santos, ao centro e barbudo, era o treinador; Martins, à direita, o capitão (Créditos: D.R.)

Hoje em dia os jogadores falam muito do mau humor do Fernando Santos de manhã. Ele próprio o assume. Já era assim na altura? Sei que fumava muito. Até no banco…
Ui, quando havia treino de manhã ninguém podia falar com ele. Vinha sempre com cara de poucos amigos. Até dizíamos a brincar: “Mas este homem dorme mal todas as noites ou quê?” Ele fumava muito no banco, na altura ainda se fumava nos jogos, mas nem isso lhe acalmava o mau humor.

O Fernando Santos, mais do que bom treinador nos jogos ou nos treinos, é um motivador. Todos lhe elogiam isso. Os jogadores gostam dele. Como é que ele vos motivava no Estoril?
O Fernando sempre foi muito sereno. Até podíamos estar a perder, mas ele não gritava com ninguém. Nem no balneário nem durante o jogo. Ele motivava-nos a conversar. Explicava-nos tudo. Estudava muito bem os adversários e trabalhava connosco a semana toda para esse jogo. Era muito metódico. Ainda é. E quando falava, falava para o grupo. Só raramente chamava alguém à parte durante o treino. A união era o mais importante para ele.

Em 1990/1991 o Estoril subiu à I Divisão com o Fernando Santos. Como é que foi essa época? O José Martins tinha sido emprestado ao Penafiel no ano anterior e foi o Fernando que o chamou de volta.
A subida foi muito difícil. E o Fernando Santos foi o responsável por ela. Ele foi defesa e, como tal, sempre trabalhou muito as defesas. E fomos a que menos golos sofreu nesse ano: 22. Também me recordo de uma história dessa época: nós à terça-feira, depois do treino, íamos todos almoçar. Mas só os jogadores. Lá mais para o fim da época, em março, íamos ter três jogos muito importantes, dois para a II Divisão e um para a Taça de Portugal. O [Jorge] Rosário, que era adjunto do Fernando Santos, um dia vai ter connosco ao restaurante e diz que o Fernando não queria que almoçássemos mais à terça-feira, porque tínhamos que descansar e estar concentrados. E foi o que fizemos: não almoçámos mais. O que é que aconteceu depois? Perdemos os três jogos seguidos. E o Fernando lá nos disse que o melhor era voltarmos a almoçar à terça.

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Um recorte de jornal de maio de 1991. Fernando Santos não conteve as lágrimas na hora da subida à I Divisão com o Estoril (Créditos: D.R.)

O Estoril desceu à II Divisão na época de 1993/1994. O Fernando Santos foi despedido e não terminou a época. Mas na seguinte foi contratado pelo Estrela da Amadora.
A época correu-nos mal. E acabámos em último lugar. O Filipe Soares Franco, que era o presidente do Estoril nessa altura, resolveu despedir o Fernando a oito jornadas do fim. O que não mudou nada. Ele na altura, magoado, ainda pensou em desistir do futebol e deixar de ser treinador. Mas felizmente aceitou o convite do Estrela. Se não tivesse aceitado, nunca chegaria ao Porto.

Ficou surpreendido quando ele foi para o FC Porto, onde acabou por ser o “Engenheiro do Penta”?
Nada. Ele tinha qualidade de sobra para treinar o Porto e ser campeão. Ainda no Estoril era evidente que se ele tivesse melhores jogadores e uma estrutura melhor à volta dele podia ter conseguido mais. Ele foi campeão no Porto com todo o mérito. E não é fácil num clube com a grandeza do Porto conciliar todos aqueles egos no balneário. O Fernando sempre foi um conciliador. O balneário está sempre com ele.

Agora que o vê na seleção, depois de passar pelo Sporting, pelo Benfica, também pela Grécia, acha que é o homem certo para ganhar o Euro?
É possível. Mas não vai ser fácil. A equipa tem soluções boas, mas não é tão forte como outras que tivemos. Faltam-nos os Rui Costas, os Figos. Mas o Fernando assume que quer ser campeão. Talvez o faça para que a equipa não relaxe. Assim, havendo um objetivo, não é o “deixa andar”. Isso motiva-a. E só com motivação é possível chegar longe. Nesse sentido, o Fernando é o homem certo na seleção.

Mas não começou lá muito bem o Euro…
O jogo contra a Islândia parecia fácil, mas não era. Os islandeses são muito físicos, defendem bem.

Acha que Fernando Santos vai mudar muita coisa contra a Áustria?
Não acho. Ele já no Estoril, quando perdíamos, mudava pouco. Até podia trocar um jogador por outro, mas nunca tirava logo aos sete ou oito de cada vez. Ele sabe que isso não melhora nada. Antes pelo contrário: vai deitar por terra a autoestima dos jogadores todos.

O José Martins também foi, durante alguns anos, treinador nas camadas jovens do Estoril. O Fernando Santos teve alguma influência nessa sua decisão de ser treinador?
Claro. Foi um treinador que me marcou muito. E até somos parecidos no modo de treinar. Eu também sou muito calmo. E procuro estar perto dos jogadores. Saber dar, mas também exigir. Procuro puxar os jogadores para o meu lado. O Fernando foi um dos treinadores com quem aprendi mais. A nível de jogo, mas também a nível de relacionamento com os outros no balneário. É um exemplo. Como treinador e como homem.