Ana Stilwell recorda aquela vez em que, ainda a dar de mamar à pequena Marta, fez um esforço para passar tempo com as gémeas, então com quatro anos. As meninas eram irmãs de um bebé recém-chegado à família que andava a deixar a mamã com menos disponibilidade para elas. “Estava a fazer um esforço e fui com elas para a piscina quando se deu uma discussão brutal”, recorda a cantora. De um momento para o outro, cada uma das gémeas começou a suplicar pela atenção da mãe, a dar mergulhos consecutivos e a gritar “Mãe, mãe, olha para mim!”. Uma sofreguidão tal que deixou Stilwell sem saber o que fazer. Os culpados eram os ciúmes.

O que aconteceu comigo foi surpreendente. Estava à espera que elas tivessem comportamentos estranhos em relação ao bebé, como bater nele, mas o que senti foi uma crescente competitividade entre as gémeas: o foco era eu e não a bebé, elas adoravam a Marta”, conta Ana Stilwell, de 29 anos, ao Observador. A forma de protestar e de pedir a atenção da mãe resultou em birras constantes, mas também em agressões. Mais do que isso, houve momentos de regressão, com as meninas a precisarem uma vez mais de ajuda para irem para a cama. E o inverso também aconteceu: uma delas largou a chucha de um momento para o outro num claro gesto de autonomia forçada para, depois, ficar aflita e precisar dela novamente.

Ciúmes: quando e como

“Não há uma idade predefinida para as crianças começarem a sentir ciúmes”, começa por dizer a psicóloga Fátima Almeida, autora do livro O Filho Preferido (editora Pactor). “Desde pequenas que elas têm comportamentos que podem ser interpretados como ciúme, como por exemplo quando pegamos outro bebé ao colo e o nosso filho com um ano de idade já se agarra às nossas pernas e chora como que a implorar que deixe esse bebé.”

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Se é verdade que não há uma data estanque para uma criança sentir ciúmes, o certo é que dos 18 aos 24 meses não há muitas oportunidades para comportamentos regressivos porque ainda está tudo a começar. Quem o diz é a também psicóloga Mariana Cordeiro Ferreira, que dá um workshop de preparação para a chegada do segundo filho no Centro do Bebé, em Lisboa. “Nessa fase são tão bebés que acabam por ter uma reação muito primária. Pode passar por pedir mais colo ou por demorar mais tempo a adquirir algumas tarefas”, explica.

A realidade é consideravelmente diferente a partir dos três anos, altura em que as crianças são mais autónomas. Aí sim, podem acontecer momentos de regressão, como voltar a precisar de ajuda para ir dormir, ou os chamados “falsos saltos de autonomia”, tal como diz Mariana Cordeiro Ferreira. Estes surgem numa tentativa de se mostrar quem é o irmão mais velho (é o exemplo da filha de Ana Stiwell que tentou sem sucesso largar a chucha). Diz a psicóloga que isto não passa de uma “estratégia psicológica adaptativa”, que não deve ser temida pelos pais, no sentido em que são situações transitórias e, na maioria das vezes, reversíveis. “São uma resposta útil a um determinado momento. Só uma franja muito pequena da população infantil não reverte”, adianta, remetendo para casos em que as coisas aconteçam com frequência, intensidade e durante muito tempo.

O importante é mesmo não repreender as crianças por se comportarem assim: “Quando estamos inseguras vamos procurar coisas familiares. É bom, mas assusta. E quanto mais atenção se der, pior. Isto passa mesmo, é a resposta de um momento”.

A isso Fátima Almeida acrescenta que surgem outros comportamentos ciumentos à medida que as crianças vão amadurecendo cognitivamente e adquirem uma nova perceção sobre o mudo que as rodeia. Estes podem traduzir-se em hostilidade, agressividade, isolamento ou baixa autoestima. No entanto, adianta, “seria simples dizer que o filho mais velho se torna numa pessoa agressiva, hostil e solitária, e que o mais novo fica egoísta, egocêntrico e mimado. Acredito que a personalidade de cada um vai influenciar a forma como as crianças lidam com os ciúmes.”

Quando os ciúmes estão na cabeça (e não na barriga) da mãe

O nascimento do segundo filho não tem impacto quase nenhum na criança, atesta Mariana Cordeiro Ferreira, que se refere apenas ao período da gravidez. Quer ela dizer que, estando os mais novos no “aqui e agora” e não tendo eles noção do que é um bebé, são as mães que acabam por projetar muitos dos seus medos e ansiedades nos filhos. A psicóloga dá conta do receio que alguns pais têm de excluir o primeiro filho aquando da chegada do segundo.

“É mais o medo da mãe do que o problema da criança. Acho que, de uma forma geral, isso tem que ver com o nosso processo emocional, isto é, queremos assegurar que os nossos filhos não vão sofrer”, diz Mariana Cordeiro Ferreira, que acrescenta que tal acontece apenas de forma inconsciente. Para esta especialista, durante a gravidez o medo tende a ser exclusivamente da mãe, sendo que “é muito raro ver uma criança preocupada com o futuro durante a gestação”. “Nós temos uma coisa que eles não têm, que é a ansiedade.”

Foi precisamente o que aconteceu com Ana Stilwell. “Sempre achei, tendo as gémeas, que já sabia que era possível gostar de duas crianças”, conta ao Observador. “No entanto, quando estava grávida da Marta a primeira sensação que tive foi de lealdade para com as gémeas. Estava um pouco irritada com este bebé porque não podia fazer tudo com elas. Mas assim que a Marta nasceu superou tudo e eu senti como se estivesse a trair as gémeas.” O cenário em causa muda consideravelmente quando efetivamente chega o segundo filho à família, algo que dependendo da personalidade ou da idade da criança pode ter muito ou pouco impacto nela, não fosse a chegada do bebé representar também a “chegada de um intruso”, afirma Mariana Cordeiro Ferreira.

Nem de propósito, Ana Stilwell, a jovem mãe de 29 anos, acabou por encontrar essas e outras respostas no livro A Minha Mãe Tem o Sol na Barriga (editora Livros Horizonte), da sua autoria: a obra, com ilustrações de Madalena Moniz, usa metáforas para abordar a insegurança e os sentimentos contraditórios com que as crianças se deparam com a chegada de um novo irmão. E se o sol é o bebé, que está na barriga da mãe, as birras são as nuvens que ensombram os irmãos mais velhos.

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A boa gestão parental

O truque para lidar com o ciúme parece passar pela boa gestão dos pais. Sem querer atribuir culpa a ninguém, Mariana Cordeiro Ferreira argumenta que, por norma, quando existem consequências a médio e longo prazo, tendo em conta a rivalidade fraternal, pode estar em causa uma gestão nem sempre adequada por parte dos pais. O exemplo mais concreto disso passa pela “comparação que pode levar à competição”. “Nunca se podem comparar duas pessoas, nem os gémeos são iguais porque temos sempre a nossa individualidade”, afirma.

A ideia de comparar é capaz de se traduzir numa ansiedade futura relacionada com a procura do melhor desempenho possível, considerando o irmão que serve de bom exemplo versus o sentimento de inferioridade, quando em causa está o outro irmão. Mas se comparar não é a melhor estratégia, ignorar ou impedir os conflitos é coisa que também não deve entrar na equação, isto porque o facto de os pais estarem sempre atentos e a evitar o surgimento de problemas entre irmãos não gera o espírito de partilha.

O equilíbrio é mesmo o mais sensato. A partir do momento em que a linguagem está adquirida, é muito importante falar. Todas as emoções são úteis e conversar sobre as coisas é dar voz ao medo. É uma questão de gestão emocional”, diz Mariana Cordeiro Ferreira.

Fátima Almeida partilha da mesma opinião e aponta o dedo na direção da comunicação assertiva e franca como chave para lidar com o ciúme. A psicóloga argumenta que na relação entre irmãos existe “um grande potencial destrutivo” caso os pais não sejam capazes de regular a convivência de ambos com normas de comportamento

Qualquer filho quer ser o mais amado, o mais valorizado e o mais reconhecido. Isto significa que quanto menos afeto percecionarem por parte dos pais, mais luta e ciúmes existirão entre irmãos. Se o ciúme for excessivo, e mesmo patológico, pode durar uma vida inteira.”

“Os irmãos têm uma ligação para a vida, mas ao mesmo tempo lutam pela atenção dos pais. Pode acontecer o irmão mais velho ficar hostil como não. A maior parte dos casos acabam por se resolver”, assegura Mariana Cordeiro Ferreira.

“O que tento incutir é que as relações entre irmãos são como todas as outras, precisam de respeito, de paciência e de empatia”, afirma Ana Stilwell, mãe de três, defendendo que este é um trabalho que deve ser feito todos os dias e a toda a hora. “Tenho uma relação muito forte com os meus dois irmãos e isso também passa para elas. Elas têm noção de que um irmão é uma coisa muito próxima.” A cantora que agora também é escritora acrescenta que não se deve incutir a noção de irmão às crianças, uma vez que tal surge com naturalidade. Mariana Cordeiro Ferreira concorda e assegura que o papel de irmão mais velho vai-se formando, pelo que os pais não precisam de estar sempre lembrar os primogénitos das coisas que eles têm de fazer:

Há pais que dizem «Vais ter de ajudar». Não! Vai ter de ser criança, caso contrário isso cria um sentido de responsabilidade [exagerado]. Por isso é que vemos muita gente adulta com muita responsabilidade para com os irmãos mais novos. Não é natural. Se quiser mudar a fralda, muda. Isso não tem de ser imposto.”

O que também não tem de ser imposto é a participação dos filhos na chegada do irmão, mas caso eles queiram participar essa é uma boa dica. E o que dizer do medo de abandono? “Não é tanto abandono, mas sim rejeição. São coisas diferentes”, explica Mariana Cordeiro Ferreira. “O abandono pressupõe que os meus pais me vão deixar num sítio. É mais o medo de deixar de ser único”, continua, não sem antes afirmar que este é receio é bastante real e até natural. “O que não é natural é uma criança não ter qualquer reação quando vê um bebé.”

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O lado bom da rivalidade (e do favoritismo?)

“O que se pode afirmar com alguma segurança é que o ciúme entre irmãos é uma coisa perfeitamente normal. Muitas vezes até ajuda a criar um espírito de competição entre eles, bem como de partilha”, argumenta Mariana Cordeiro Ferreira, salientando que o ciúme, quando bem gerido pelos pais, é uma fonte de crescimento. Mas não é a única coisa positiva. Também a rivalidade desempenha um papel semelhante.

Defende a psicóloga e escritora Cristina Valente que os pais não devem intrometer-se nos conflitos entre irmãos: “A não ser que seja algo que envolva riscos para a saúde, na maior parte das vezes os pais não devem interferir na rivalidade entre irmãos. Os irmãos têm sempre ciúmes, mesmo que não o manifestem, e as crianças não conseguem perceber que o amor é infinito”. Mariana Cordeiro Ferreira atesta a afirmação da colega de profissão, ao dizer que a intervenção só deve acontecer “em caso de hospital”.

Cristina Valente já antes explicou ao Observador que é saudável e natural existir uma certa dose de conflito, de forma a que os mais novos sejam capazes de desenvolver competências de negociação. No final de abril, a psicóloga argumentava que as crianças devem resolver os seus problemas entre elas, não fossem elas naturalmente amáveis e pouco conflituosas. “Só deixam de ser assim quando há a presença de um adulto porque procuram atenção, procuram o favoritismo.”

Voltamos à velha questão do favoritismo. Sobre isso, a psicóloga Fátima Almeida tem a dizer que “antes de procurar atribuir essa culpa aos pais, seria importante analisar toda a constelação familiar e os comportamentos de todos os que são próximos da criança. Por vezes os pais podem não perceber que os seus comportamentos apontam no sentido do favoritismo e serem os outros elementos da família a criar o desconforto entre os irmãos”. E caso isso aconteça, caso os filhos tenham a perceção de que há favoritismo, o ideal passa sempre pela comunicação, tida “como a chave para fomentar o desenvolvimento de uma relação sadia entre os irmãos e a harmonia entre eles”.