Título: “Ouve a Canção do Vento” & “Flíper, 1973”
Autora: Haruki Murakami
Editora: Casa das Letras
Tradução: Maria João Lourenço
Páginas: 336

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Murakami sempre se revelou reticente em permitir a tradução para línguas ocidentais das suas duas primeiras obras, agora publicadas pela Casa das Letras, por considerá-las novelas ainda bastante imaturas. Importa, assim, compreender os motivos que levam a que este veredicto do escritor japonês seja inteiramente ajuizado.

As duas novelas constituem os primeiros volumes daquilo a que se convencionou chamar “a tetralogia do Rato”, onde se conta a história de uma personagem que fala na primeira pessoa, cujo nome nunca é dito, e de Rato, o amigo abastado dessa mesma personagem. Rato é um jovem que se revolta contra o sítio de onde vem, é um rico que odeia a riqueza, um jovem que odeia a universidade, abandonando-a sem nunca conseguir perceber porquê, alegando apenas que “não gostava da maneira como eles aparavam a relva no jardim” (Flíper, 1973 [F], pág. 43). O Rato descreve-se como alguém que não se consegue aproximar do mundo, como o rapaz que fica sempre de pé no jogo das cadeiras, o que leva a que o seu único verdadeiro amigo seja J, o chinês dono do bar que costuma visitar já depois da hora do fecho. Mas se o Rato é uma personagem interessante, densa e bem construída, é lamentável que seja depois remetido para um segundo plano, apenas para dar o palco ao seu amigo, que não é mais do que uma versão contrafeita e afectada de si mesmo. A anónima personagem principal de ambas as novelas não parece trazer nada de novo à história de Rato, apresentando apenas exactamente a mesma alienação e desconforto, mas de forma mais histérica.

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Um exemplo perfeito do que se argumenta acima acontece logo nas primeiras páginas de Ouve a Canção do Vento (OCV), quando o Rato, que, segundo nos é dito, lia pouquíssimo, pergunta ao narrador e personagem principal por que é que este lê tanto. A esta questão, o narrador responde com outra pergunta: “Porque é que bebes cerveja?”. A resposta que um e outro dão às respectivas perguntas traça a diferença fundamental entre ambos. O Rato explica, sem grandes postulações filosóficas, que bebe cerveja porque “o que a cerveja tem de bom (…) é que acabas por deitá-la fora ao mijar. Não fica nada cá dentro” (OCV, pág. 17), resumindo de forma clara toda a sua complexidade. O narrador opta por responder com um raciocínio críptico e com laivos místicos, dizendo que lê apenas livros de autores mortos por ser mais fácil perdoar coisas aos mortos.

Esta importância dada ao narrador parece ter como justificação principal em muitos momentos ser também uma espécie de projecção do próprio Murakami, uma vez que é descrito como alguém que, tal como o escritor, sendo de uma terra pequena no Japão, estuda em Tóquio, lê muito, é fascinado por literatura, trabalha como tradutor inglês-japonês e adora basebol. Maria João Lourenço, a tradutora do livro, reforça a indisfarçável associação entre Murakami e o narrador, ao colocar numa nota de rodapé uma descrição da terra natal de Murakami feita pelo próprio que é em tudo semelhante à descrição que o narrador faz da aldeia onde nascera.

Esta divisão de atenções entre o Rato e o narrador, para além de impedir que o primeiro tenha o foco merecido e tornar incompreensíveis alguns dos seus comportamentos (como, por exemplo, a sua decisão de se tornar escritor), leva ainda a que a tensão em que as personagens vivem se disperse totalmente, deixando o leitor com a sensação a que o narrador se refere no início de Flíper, 1973 (F73), quando diz sentir que “a história [se] repetia. Um eterno déjà-vu, para pior, sempre para pior” (F73, pág. 13).

E a narrativa?

No entanto, o indício maior da imaturidade que o próprio Murakami reconhece está na falta de aptidão para a construção de uma narrativa. Em ambas as novelas, abundam as passagens que não parecem fazer qualquer sentido dentro da história que se pretende contar. Em Ouve a Canção do Vento, por exemplo, Murakami refere por cinco vezes o nome de John Kennedy, sem nunca explicar essa alusão, insere a personagem de um radialista com soluços que se emociona com a carta de uma ouvinte, sem que isso venha de alguma forma ao encontro da história a ser contada e dedica um capítulo a um parágrafo de Michelet sem motivo aparente. Poderia achar-se que estas falhas lógicas na construção do enredo são apenas gralhas motivadas pela distracção ou fruto de diferenças culturais que tornam as novelas incompreensíveis para um ocidental, mas a razão parece ser outra. Murakami procura seduzir o leitor através de saltos lógicos que, vistos de repente, parecem profundos. Ao enfraquecer a ligação entre as várias cenas da sua narrativa, o escritor tenta conferir uma vaga aura místico-críptico-filosófica que, quando vista de perto, não quer dizer nada.

Essa intenção torna-se evidente em Flíper, 1973, quando a personagem principal vai jantar com uma rapariga que conhecera alguns dias antes. A meio do jantar, a rapariga pergunta-lhe se quer saber porque é que ela desaparecera sem deixar rasto durante uma semana. Ao ouvir isto (e, recorde-se, a meio de um jantar romântico), o protagonista decide responder à pergunta que lhe fora feita contando a história de quando no ano anterior dissecara uma vaca, o que, mesmo dando espaço a eventuais diferenças culturais, parece bizarro. Diz então, sem qualquer introdução:

quando abrimos o abdómen, encontrámos um punhado de erva no estômago. Enfiei a erva num saco de plástico, levei-a para minha casa e despejei aquilo em cima da secretária. Desde então (…) sempre que algo me desagrada, olho para o montinho de erva por digerir e pergunto a mim próprio por que motivo comerão as vacas aquela bodega, dando-se ao trabalho de ruminar muito bem para depois deitarem tudo fora” (OCV, pág. 117).

A reacção da rapariga à confissão feita a meio de um jantar por um rapaz que mal conhece de que em cima da sua secretária está um monte de erva semi-digerida retirada de dentro de um abdómen de vaca recentemente falecida não é, ao contrário do que seria expectável, de espanto ou repulsa. Pelo contrário, a rapariga encara esta confissão como uma resposta aceitável à pergunta “Queres que te conte a verdade?” e afirma “Compreendi. Não te digo mais nada”, perguntando-lhe então porque morrem as pessoas, ao invés de, por exemplo, abandonar o restaurante horrorizada. A total ausência de nexo nas conversas ou nas transições entre cenas nas novelas leva a que o leitor se sinta transportado para um ambiente hipnotizante, que se esfuma no entanto após a mais elementar tentativa de apreensão de sentido.

Murakami procura assim que a atmosfera de ambas as obras seja vaga o suficiente para que soe a qualquer coisa entre o místico e o filosófico, levando a que o leitor se culpe a si próprio pela ausência de sentido do que lê. Parece ser essa, aliás, a única justificação existente para o mote de Flíper, 1973: “onde há uma entrada tem de existir uma saída” (F73, 15).

Finalmente, a imaturidade a que Murakami se refere revela-se ainda na quantidade de incoerências de vários géneros que encontramos. Se podemos ignorar passeios dados em Domingos de manhã para “admirar o pôr-do-sol” (F73, 106), torna-se mais difícil compreender o que leva a que Murakami sugira, no início de Ouve a Canção do Vento, que cenas de sexo e mortes de personagens são truques de escritores pouco criativos para depois povoar as novelas de cenas eróticas envolvendo o protagonista (que, sublinhe-se, passa os sábados a dançar ao som de uma banda de tributo a Santana e dedica todas as suas horas vagas a ouvir concertos para flauta de Handel ou à prazenteira actividade de ler e reler a Crítica da Razão Pura) com mulheres de “seios bem modelados” (OCV, 28), com mulheres de “seios [que] pareciam duas toranjas” (OCV,38), ou com duas gémeas lésbicas que confessam a um operador de televisão por cabo que o protagonista é “fora de série (…) um autêntico animal” (F73, 51), sem que isto pareça ter o mínimo propósito.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.