“Ele entende-me”, “conhece-me verdadeiramente”, “no ponto”. “Ele” é um algoritmo que mastiga milhares de músicas todos os dias e estes são alguns comentários de amor da legião de fãs da lista semanal de recomendações do Spotify, no Twitter. A loucura em torno da playlist “Weekly Discover” foi um dos temas principais do Sonar+D, conjunto de conferências que acompanhou o festival com o mesmo nome (e que aconteceu na última semana em Barcelona): homens ou máquinas, afinal, quem é que nos anda a guiar no admirável mundo da música online?

“Houve um tempo em que tudo aquilo que queríamos era poder ouvir todas as músicas do mundo, quando e onde fosse” explica Ajay Kalia, programador do Spotify. Esse dia já chegou há algum tempo, já é passado. Mas não ter de esperar por um música na rádio, pôr um disco a tocar ou fazer download de um álbum tem o seu lado negro: “De repente tínhamos este continente de milhares de milhões de canções, mas sem um mapa para nos guiar” continua Ajay, que esteve na origem de projetos como o Echo Nest, um serviço de inteligência artificial especializado em música, comprado pelo Spotify em 2014. Foi aqui que começou a trabalhar no universo de canções disponíveis e no consumo individual de música.

“Há uma parte pragmática nisto tudo, que é criar esse mapa, mas logo existe um universo muito mais subjetivo que só acontece com a música: ninguém se chateia se no eBay te recomendam um utensílio de cozinha que não precisas – com a música sim, porque é uma experiencia muito ligada à identidade. Uma recomendação em falso e perdes toda a credibilidade” diz.

Como é que isto funciona?

Mathew Ogle, que acompanha Ajay na explicação do fenómeno, trabalhou para a Last.fm, uma rede social que analisa todas as faixas mp3 que um usuário ouve e recomenda novos grupos, uma espécie de rádio digital submissa aos gostos do ouvinte. Durante a primeira década do novo milénio, quando o Facebook era apenas um protótipo, a Last.fm era obrigatória para os amantes de música dedicados às plataformas digitais e inventou um novo verbo para o que fazia: scrobbling – a função que deveríamos desligar antes de ouvirmos música que nos envergonhasse em frente dos amigos.

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Ajay Kalia e Mathew Ogle

Dez anos depois, tudo é mais sofisticado. Ogle dá um exemplo: numa das pesquisas que levaram a cabo antes de lançar a recomendação semanal do Spotify, perguntavam três artistas favoritos a uma amostra. “Houve uma pessoa que respondeu: James Brown, Ottis Redding e Limp Bizkit. Obviamente que o que faríamos antes seria ignorar Limp Bizkit. Hoje não, e chegámos à bizarra conclusão que 5% das pessoas que gostam de James Brown também gostam de Limp Bizkit.”

O resultado da recomendação semanal é afinal uma mistura de curadoria – só entram músicas que estão incluídas em pelo menos uma playlist feita por um humano em qualquer parte do mundo, e muitos, muitos algoritmos: bocados de código que processam não só os títulos mais ouvidos, mas também a ordem das músicas. “A ideia é formar um padrão que faça sentido só para ti. Podemos juntar um milhão de perfis e nenhum terá a mesma lista de recomendações semanais” explica Ogle. E para estas coisas, o tamanho sim, importa: a playlist tem no máximo 2 horas de música nova, o suficiente para que mantenha um aspeto humano. “Se alguém te enviasse um CD com 100 músicas que compilou a pensar em ti, essa pessoa não seria tua amiga, seria um stalker, e o mesmo se passa connosco” diz.

Erros bons

Outro das características humanas é o resultado de um bug na programação – às vezes, e aparentemente sem critério, incluem música que já conhecemos mas não ouvimos há algum tempo. “Primeiro corrigimos, depois vimos que na verdade as pessoas gostavam deste erro – e voltamos a inclui-lo” explicam.

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O Sonar+D

Ainda assim, nos últimos 11 meses, dizem ter sido responsáveis pela introdução de 5 mil milhões de novas músicas nas listas de reprodução de usuários de mais de 60 países. Se é uma das pessoas que espera a segunda-feira por este motivo, não pense que a escolheram a sua foto de perfil por uma razão especial – é automaticamente personalizado: “Por incrível que pareça ainda hoje recebemos emails de pessoas a agradecer termos usado a sua foto para ilustrar uma playlist” conta Ogle.

A conversa de Mathew Ogle e Ajay Kalia inaugurou o ciclo de conferencias Sonar +D no último fim de semana, em Barcelona. Criadas há quatro anos, as sessões com personalidades do mundo das artes e tecnologia pretendem colocar em debate durante o dia o que durante os concertos da noite não se discute – o melhor que a mundo da eletrónica tem para oferecer.

A edição deste ano do Sonar+D fechou com um recorde: quase 5 mil profissionais, de 60 países diferentes puderam participar durante três dias em encontros sobre temas tão diversos como música, realidade virtual ou sustentabilidade energética.