Estava apaixonada. E a paixão fazia-a ignorar algumas conversas “estranhas” do namorado, também agente da PSP, com os amigos do ginásio. Até àquele dia de junho de 2014 em que foi chamada a colaborar. O namorado, o agente Elói Fachada, disse-lhe que precisava dela para irem “a casa de umas senhoras ver o que elas tinham lá”. Ela fardou-se, acompanhou-o a Mem Martins e só no regresso pôs as mãos na consciência: tinha acabado de participar num assalto. E era tarde demais para voltar atrás.

Telma, 35 anos, é a única mulher sentada no banco dos réus, onde 18 arguidos estão a ser julgados por participarem em assaltos a residências. Os suspeitos simulavam ser polícias de serviço, em plena rusga policial, para entrarem em casa das vítimas. Depois assaltavam-nas. Por trás desta “rede”, acusa o Ministério Público, estará Paulo Pereira Cristóvão, antigo vice-presidente do Sporting e ex inspetor da Polícia Judiciária, e dois outros arguidos. Seriam eles quem escolhia os alvos a assaltar. Mas no caso em que Telma participou, o nome deles nunca foi referido.

É a segunda sessão de julgamento, esta quarta-feira no Campus de Justiça, embora já leve 40 minutos de atraso. Telma tinha pedido para prestar depoimento o mais rapidamente possível. Vive no norte do país e precisava ser dispensada de estar presente em todas as sessões. O coletivo de juízas aceitou. Foi para o Norte que decidiu ir viver depois da sua vida se ter “tornado um verdadeiro inferno”. E tudo aconteceu em pouco menos de um mês.

De pé, de costas para os arguidos e com um ar calmo, Telma conta como tudo aconteceu. Há uma pessoa que não está presente para ouvi-la por motivos de saúde, o ex-namorado, o também polícia arguido no processo, Elói Fachada.

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Telma era agente da PSP na esquadra da Cruz de Pau, no Seixal, quando o conheceu. Atraiu-a a forma física, a alimentação cuidada. Como ela, Elói tinha filhos, e era policia — embora ao serviço da Divisão da PSP de Almada. “Estava encantada e apaixonada”, disse a certa altura do seu depoimento.

Do início do namoro à partilha da mesma casa foram três semanas. Telma mudou-se para casa de Elói e até começou a frequentar o mesmo ginásio que ele, na Quinta do Conde – o mesmo que grande parte dos arguidos frequenta. Confessa que se apercebeu de algumas conversas dele com amigos um pouco suspeitas. Mas ignorou. Até aquele dia.

“Nesse dia eles tinham tudo combinado e faltava alguém. O Elói perguntou se eu não queria ajudar numa situação, na casa da mãe da namorada do Luís Conceição (também da PSP)”, conta a medo. “Ajudar a quê?”, pergunta-lhe a juíza Marisa Arnedo. “…Tinha lá dinheiro. Que eu iria tocar à campainha fardada e que seria feita uma rusga…”, responde Telma sem nunca verbalizar a palavra assalto. “Ia simular que estava no exercício das suas funções”, conclui a juíza. Ela confirma.

Telma conta que deixou a Margem Sul no carro de Elói. Com eles seguia o arguido Serge. A primeira paragem foi em Mem Martins, onde o agente da PSP Luís Conceição lhes entregou um falso mandado de busca. O agente Conceição não podia participar no assalto porque era namorado da vítima – uma mulher que conheceu na esquadra, na sequência de uma queixa da PSP. E que lhe contou que o marido trabalhava em Angola e que escondia num cofre o dinheiro que ele lhe enviava.

Foi, depois, Telma quem tocou à campainha do alvo. Disse que era da PSP e que vinham fazer uma rusga. Lá dentro mãe e filha responderam e abriram a porta às autoridades. Telma estava fardada e armada. Elói e Serge vestiam coletes da PSP. Ela manteve-se com as duas vítimas na cozinha “Eles vasculharam tudo. Encontraram um cofre e trouxeram cerca de 5 mil euros e peças em ouro”, recorda, a custo.

A acusação do Ministério Público diz que Telma foi determinante para fazer conversa com as mulheres e para elas lhe fornecerem o código do cofre. Ela nega. Garante que falou com elas sobre o tempo “que estava incerto” e sobre a doença de uma delas e da medicação que tomava.

Só quando tudo terminou Telma se percebeu o que acabara de fazer. “Efetivamente meti-me me num assalto. Quando saí de casa das senhoras tomei noção real do que tinha feito, fiquei em estado de choque. Se pudesse voltar atrás voltava. Estou completamente arrependida de ter conhecido aquela pessoa”, desabafa, por fim. Já na casa de Elói, Telma diz que recusou receber a sua parte do dinheiro. E que, de seguida, começou a procurar casa para abandonar Elói.

“Só vivi com o Elói mais uma semana. Já anteriormente ele tinha atitudes algo violentas e depois foi pior. Eu temi pela minha integridade física e pela dos meus filhos. Diariamente ameaçava-me, dizia que tinha que estar calada, não podia dizer a ninguém. Sou muito sincera, estava iludida, apaixonada”, diz Telma.

No dia em que foram detidos pela Policia Judiciária, uma semana depois do assalto, Telma ainda vivia em casa de Elói. Assim que viu uma série de policias à porta, telefonou-lhe desesperada. “Disse-me para me livrar de uns papéis que estavam em cima da lareira. E eu queimei-os”, disse. Só depois abriu a porta às autoridades. Acabou presa.

“A minha vida ficou um inferno desde esse dia”, conta.

O juiz de instrução criminal ordenou-lhe que ficasse em prisão preventiva. Ficou sem ver os dois filhos, menores. Os onze anos ao serviço da PSP ficaram reduzidos a um processo disciplinar. O processo está suspenso até sentença do julgamento. Mas ela também está suspensa de funções, até lá, e sem ordenado. “Decidi ir viver para o Norte com os meus filhos para não sofrer represálias por ter colaborado com as autoridades”, disse “Tive que me fazer à vida”.

“O arquiteto disto tudo”

Mário Lopes, mais conhecido por Vítor Hugo, é um dos arguidos que se encontra em prisão preventiva. No cadastro tem já um longo historial de crimes, alguns levaram-no a cumprir pena. Na primeira sessão do julgamento assumiu-se como o “arquiteto disto tudo”. Tentou livrar os polícias sentados no banco dos réus a dizer que eram “bons homens, coitados” e assumiu o que tinha feito. “Não ameaçámos ninguém com armas porque as pessoas colaboravam a pensar que éramos da polícia”, disse nesta sessão.

O arguido disse sempre não se tratarem de assaltos, mas de “cobranças” de dinheiro. Só uma vez, durante o seu depoimento, “fugiu-lhe a boca para a verdade”, como sublinhou a juíza. E lá deixou escapar a palavra “assaltos”. A juíza quase lhe caiu em cima: “senhor Mário, ouviu o que acabou de dizer. Esteve sempre a dizer no seu depoimento que o que estava a falar não eram assaltos. Agora fugiu-lhe a boa para a verdade. Estamos entendidos, não estamos?”. Ele abanou a cabeça, acedeu. E olhou para o chão.

Da parte da tarde do julgamento, que também já recomeçou depois das 15h00, o agente Luís Conceição continuou com o seu depoimento. De voz sumida e sempre a ser chamado à atenção para falar mais alto, assumiu ter participado nas “cobranças”. Também disse que era ele quem emitia os falsos mandados de busca, uma vez que integrava a Investigação Criminal da PSP e tinha mais facilidade para isso. Era Vítor Hugo, a alcunha de Mário, quem lhe dava indicação dos nomes que deviam constar nos mandados.

Luís Conceição negou, no entanto, ter participado em qualquer ato violento. Diz desconhecer que tenham atado as mãos de um homem e lhe tenham colocado uma toalha na cabeça até perder os sentidos, durante um assalto em Odivelas. E nega que ele e o agente Elói Fachada tenham, durante uma patrulha, agredido um cidadão ucraniano. Segundo acusação, os dois conduziam o carro da polícia quando se depararam com o sujeito a “causar distúrbios”. Levaram-no no carro policial e, depois, num local ermo espancaram-no. Ele nega. Mesmo confrontado com as perícias médicas. Diz que o homem estava embriagado e que só deram uma volta com ele “para se acalmar.”

A sessão acabou mais cedo. “Parece-me que todos os advogados têm diligências”, disse, irónica, a juíza. Eles sorriram. A Seleção Portuguesa ia jogar às 17h00.