Quase meia hora do mesmo vídeo — a ex-modelo Naomi Campbell a dançar sensual, numa imagem a preto e branco, projetada no palco. Por cima há uma espécie de som monocórdico, que se vai tornando estridente no final. Mesmo sem ter começado ainda o concerto, Anohni sabe que captou a atenção da plateia, nem que seja pela estranheza da situação. Tinha de nos preparar para o que aí vinha. Quer entrar pelos nossos ouvidos, claro. Mas também quer os nossos olhos atentos. Quero chegar ao nosso cérebro, dominar os nossos pensamentos. Quer acordar-nos o coração.

A artista anteriormente conhecida por Antony Hegarty, quer mudar o mundo, como disse em entrevista ao Observador. E antes de mudar o mundo, mudou algumas coisas nela própria. Para começar, deixou cair definitivamente o nome masculino que só era usado na vida pública. Anohni já não é apenas transgénero junto da família e dos amigos, é-o agora por inteiro, sem medo de perder o nome forte que construiu na última década, desde que assinou I Am a Bird Now, em 2005, como Antony and the Johnsons.

Caiu também o violino, o piano doce, o som orquestral, que caracterizaram as suas anteriores visitas a Portugal — a última das quais como cabeça de cartaz do NOS Primavera Sound, no ano passado. Caiu alguma da fragilidade e da vulnerabilidade. No novo disco, Hopelessness, e em palco, Anohni está mais cáustica, crua, sarcástica até (“Watch Me”, por exemplo). Não é para menos. Está revoltada com um mundo em que há drones a bombardear vilas inteiras. Com Obama, de quem se esperava tanto. Com a vigilância permanente aos cidadãos. Com o egoísmo e o desrespeito pelos recursos que o planeta (não) tem. Com as violações violentas a mulheres, que têm acontecido na Índia.

Quando marcam 22h00 no relógio já a plateia sabia de cor os movimentos de Naomi Campbell. E eis que finamente o vídeo mudou e entrou outro rosto feminino, pintado de branco e vermelho, que mexia os lábios como se estivesse a cantar a letra da primeira música do concerto, “Hopelessness”. As duas mesas de mistura são ocupadas por Christopher Elms, colaborador de Björk, e Daniel Lopatin, mais conhecido como Oneohtrix Point Never, o homem que Anohni chamou para fazer com ela este disco eletrónico. A protagonista só se mostrou à segunda música, “4 Degrees”. Dizer que se mostrou é favor: surgiu toda coberta de branco, à exceção do rosto, tapado com um tecido preto.

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Não quer que ninguém se distraia a olhar para ela. Quer que estejamos todos focados em ouvir que “it’s only 4 degrees, it’s only 4 degrees” de aquecimento global previstos até ao fim deste século. Podem matar os animais, podem asfixiar-nos, mas “são só quatro graus”. Caso a audição não seja suficiente, cada música tocada fez par com um vídeo, quase todos protagonizados por mulheres de diferentes raças e idades a cantar com ar sofrido as letras das canções do disco. Anohni tocou-as a todas, de “Execution” até “Marrow”, e ainda acrescentou inéditas, como “Indian Girls” ou “Paradise”.

anohni coliseu porto

Momento captado em “Watch Me”, canção sobre a vigilância constante aos cidadãos. “I know you love me / ‘Cause you’re always watching me”. © João Octávio / Coliseu Porto

Mais do que um concerto, no Coliseu do Porto assistiu-se a uma performance visual e sonora, que se vai repetir integralmente esta quarta-feira no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. A música eletrónica não costuma ser a primeira opção quando se pensa em canções de protesto, Anohni veio tornar estas contas menos desequilibradas. Ainda que ao primeiro contacto ao vivo haja alguma confusão sensorial: há uma batida eletrónica e um jogo de luzes que pedem ao corpo que se balance como fazia Naomi Campbell no vídeo inicial, mas foram raros os presentes que abanaram sequer a cabeça ao ritmo da música. Não há clima para dançar perante rostos perturbados num ecrã gigante, que materializam a dor que a cantora interpreta. Quem quer dançar ao som de relatos de drones que matam, de direitos humanos atropelados, de animais extintos ou da ameaça de ver o planeta a arder?

Ela pode não ter medo de perder o nome forte, nem de chutar para canto os sons orquestrais, melancólicos, que fizeram e ainda fazem arrepiar tanta gente. Há uma urgência em deixar de lado a fragilidade e tomar um papel ativo na mudança do estado das coisas, aliada ao mérito de querer inovar artisticamente, tal como fez em 2005 com a criação de Antony and the Johnsons.

Mas o certo é que a sala tinha muitos lugares vazios. Será que os fãs de sempre perceberam quem era este nome desconhecido, Anohni? E quem percebeu, terá interesse em segui-la pelos novos caminhos da eletrónica? Será da data, enfiada entre os grandes festivais de verão, e já não há dinheiro para adquirir mais um bilhete (só os da plateia custavam 40 euros)? É difícil arriscar uma resposta. Também se viram algumas pessoas a abandonar o espetáculo a meio, talvez por não terem feito bem o trabalho de casa e não saberem ao que iam, talvez por não se terem deixado conduzir pela performance muito focada na mensagem. Uma das pessoas que saiu comentou com a outra que achava que a cantora estava a fazer playback.

O concerto durou uma hora e em nenhum momento os músicos se dirigiram à plateia. Não houve amor. Anohni parece não estar para aí virada. 60 minutos depois, os três despediram-se com “Drone Bomb Me”. Naomi Campbell voltou a ser a protagonista do vídeo, mas agora trocou a dança pelo choro. Soluça de medo, enquanto pede a um drone americano que a atinja. Nós é que acabámos de ser bombardeados com realismo. O tempo dos afetos acabou (Marcelo Rebelo de Sousa discordaria, certamente). É hora de acordar mentes entorpecidas e atiçar ações concretas. Não sabemos se Anohni irá conseguir, mas uma coisa sabemos: ela fez um bom trabalho.

Ate hoje, Chris Cornell acha que foi mal compreendido quando em 2009 lançou Scream, em parceria com Timbaland. Por vir de um universo tão diferente chamado rock e por achar que a obra que fez não era igual a mais nada do que tinha sido feito até então. Esperemos que o vocalista dos Soundgarden tenha ouvido falar de Anohni, que tenha ouvido Hopelessness com atenção e que perceba que ambos os fatores com que se desculpa podem resultar efetivamente em boa música. Mesmo quando a sala de espetáculos não enche tanto quanto se esperaria.