A saída do Reino Unido da União Europeia vai afetar a própria Grã-Bretanha e a Europa como a conhecemos hoje. Muitos dos problemas são políticos, sociais e económicos, mas também os há que são desportivos – e sendo “desportivos”, são também políticos, sociais e económicos.
A mais importante das ligas de futebol da Europa, a Premier League, que é também aquela que mais futebolistas estrangeiros tem por plantel, aquela que faz circular mais dinheiro em transferências e direitos televisivos, será afetada pelo Brexit. Como? Logo à partida, todos os futebolistas até aqui comunitários (ou seja, naturais de países da União Europeia — ou com passaporte de um desses países, como o brasileiro Fernando, ex-FC Porto, que é cidadão português no plantel do Manchester City), contarão como estrangeiros.
Ora, não sendo mais o Reino Unido comunitário, e havendo na Premier League restrições à contratação e utilização de estrangeiros não-comunitários nos plantéis (até aqui eram sobretudo jogadores sul-americanos ou de África, mas a partir de agora serão todos os não-britânicos), os clubes têm uma carga de trabalhos pela frente para contratar no futuro. Não é por acaso que todos os clubes da liga inglesa, todos sem exceção, apelaram ao ‘Ficar’ no referendo que decidia a continuidade ou não do Reino Unido na União Europeia. O diretor-executivo da Premier League, Richard Scudamore, afirmou à BBC antes do referendo que “todos os clubes expressaram o seu apoio à continuidade na União Europeia”. E acrescentou: “Na Premier League há uma abertura que seria completamente incoerente se tomássemos uma posição oposta”.
Soluções? Ainda não há — ainda se calculam os estragos deste “terramoto” político — mas tudo leva a crer que terá que ser criado pelo Governo britânico um regime de exceção para o futebol, facilitando a contratação e utilização de estrangeiros (onde se incluem os até aqui “comunitários”) na Premier League. Ou isso, ou poderá haver um boicote à competição pelos clubes, que não quererão ficar de um dia para o outro sem muitas das suas mais-valias “estrangeiras”.
E são muitas as “mais-valias”. Vamos tomar como exemplos os plantéis em 2015/2016 do Manchester United (hoje treinado por José Mourinho), do Manchester City (de Guardiola), do Arsenal, Liverpool e Chelsea, três crónicos candidatos a vencer a Premier League. No United, havia 34 futebolistas inscritos, 13 deles comunitários e cinco extra-comunitários. No City, num plantel de 26 jogadores, 12 eram comunitários e 10 extra-comunitários; só quatro são britânicos e um deles habitual titular: Hart. Em Liverpool, o plantel tem 31 jogadores, 12 dos quais comunitários e cinco não-comunitários. Em Londres, o Chelsea tem 12 comunitários e 11 extra-comunitários num plantel de 30 jogadores. O Arsenal, por sua vez, tem 15 comunitários e seis extra-comunitários num plantel de 29.
E caso não haja um regime de exceção? Vamos só pensar nos efeitos desportivos em campo. E, para isso, observemos em detalhe o plantel do mais recente campeão da Premier League, o Leicester, que tem seis comunitários e seis extra-comunitários. Mas pensemos sobretudo em duas estrelas maiores do plantel: o francês N’Golo Kanté, de França e o franco-argelino Riyad Mahrez. Hoje, não só não poderiam ser contratados, como também não poderiam ser utilizados. Porquê? Porque há as tais regras muitíssimo apertadas para as vagas de extra-comunitários. E quer Kanté, quer Mahrez, passarão a ser “extra-comunitarios” (ou simplesmente “estrangeiros”) com o Brexit.
A saber: “Um jogador dos 10 primeiros países do ranking da FIFA [como é o caso da França, mas não da Argélia] precisa de ter jogado pelo menos 30% dos jogos da sua seleção nos últimos 2 anos.” Kanté é hoje titular pelos Bleus, mas é há poucos meses e só se estreou com Deschamps, pouco antes do Euro 2016 começar. Mas a regra para a atribuição de licenças de trabalho a extra-comunitários é mais detalhada ainda: “Nos classificados entre o 11º e o 20º lugar, essa percentagem aumenta para 45%, entre o 21º e o 30º para os 60%, e entre o 31º e o 50º para os 75%.” Ora, a Argélia é a 32.ª classificada no ranking da FIFA, e Mahrez não disputou 75% dos jogos pela sua seleção nos últimos dois anos. O futebolista de 25 anos só optou por jogar pela Argélia (e não pela França, onde nasceu e se formou como futebolista) pouco antes do Mundial do Brasil, em 2014, onde só disputou um jogo em três. É rés vés Campo de Ourique, mas não poderia ser inscrito.
Contudo, e não havendo ainda um novo regime de contratação para extra-comunitários, o que existe deixa a porta entreaberta para alguns casos. Lê-se: “Se o jogador não cumprir os critérios anteriores e a licença for recusada, podem apresentar um recurso a ser analisado por uma comissão independente, que terá em conta se o jogador é ou não de ‘alto calibre’, além da sua potencial contribuição para o jogo.” O “alto calibre” não está em causa quando se fala de Kanté ou Mahrez.
Mas acrescentemos só mais um exemplo recente que esbarraria nestas regras. Lembra-se de Martial, que poderá custar 80 milhões de Euros ao United? Pois bem, quando foi contratado, com 19 anos, ainda nem internacional por França era. Logo, hoje, e depois do Brexit, nunca poderia ter sido comprado. Como pode um miúdo de 19 anos e sem experiência internacional ser de “alto calibre”, certo?
O que também ficará dificultado com o Brexit é a contratação de futebolistas menores de idade. Dois exemplos: Cesc Fàbregas e Gerard Piqué. Ambos foram contratados ao Barcelona — pelo Arsenal e Manchester United, respetivamente — quando tinham somente 17 anos. Ora, os jogadores estrangeiros com menos de 18 anos estão proibidos de se transferir para a Premier League. Mas existem (ou existiam, antes do Brexit) três exceções:
- Se a mudança dos menores para Inglaterra não tiver a ver com razões “futebolísticas”, como no caso de os país trabalharem no Reino Unido;
- Se os menores viverem perto da fronteira do Reino Unido;
- Se os menores tiverem idades compreendidas entre os 16 e os 18 e forem cidadãos da União Europeia.
Fàbregas e Piqué preenchiam esta última exceção. Mas hoje, depois do referendo, não preencheriam mais. E a Premier League, sobretudo o Arsenal de Wenger nas últimas décadas, dá oportunidades a vários jogadores Europeus (e não só britânicos) menores de idade.
Uma coisa é certa: se os clubes ingleses, apesar de terem os cofres abastados pelos direitos televisivos, tiverem que comprar só internacionais de “alto calibre”, vão gastar o que têm e o que não têm. E gasta que tem mais, como o Chelsea e os clubes de Manchester, o Arsenal também, perdendo a Premier League alguma competitividade. Pior: não há por aí internacionais desses aos pontapés.
Mas também há quem veja no Brexit uma oportunidade para potenciar os futebolistas britânicos. Desde logo os políticos que defendem a saída, claro, mas também o presidente da Associação de Futebolistas Profissionais no Reino Unido, Gordon Taylor, que defende que a saída da União Europeia pode “favorecer o florescimento de talentos ingleses nos principais emblemas e assim aumentar a qualidade da seleção”.
Por falar em britânicos. Não os há a jogar só na Premier League. Norte-irlandeses e escoceses nas principais ligas europeias? Não, nem um. O sportinguista Ryan Gauld nem dos bês do Sporting saiu ainda. Mas há um galês. E que galês: Gareth Bale. A Escócia já pensa em deixar o Reino Unido para continuar na União Europeia. Mas com o País de Gales a situação é diferente. E afeta o Real Madrid. Em Espanha, cada equipa só pode utilizar três extra-comunitários por jogo. E o Real usa James, Casimiro e Danilo, três ex-portistas. Ora, se Bale é britânico e, portanto, não-comunitário, algum deles teria que sair. Mas o problema não é só esse: e se o Real quiser contratar mais algum sul-americano ou africano? Ou mesmo europeu não-comunitário? Não pode.