Ele fala disto no dia antes, mas não diz a expressão, evita-a, poupa no arrojo das palavras para ser generoso nos gestos. “Precisamos de uns assim, deste tamanho.” Estica os braços, separa-os, quer dar a ideia de tamanho, de serem grandes. Toda a gente percebeu a ideia, Fernando, mas só até ao momento em que distribuem as folhas com os onzes, cá em cima no estádio, é que te levo a sério. Há quatro nomes que mudam, dois jogam de início quando nunca tinham jogado até aqui. Três mudanças são na defesa, o sítio onde se aconselha a mexer com pinças. Grandes ou não, tem-nos no sítio.

Isto é que é ter tomates.

Porque aqui já é a eliminar, é o jogo do ganhar ou ir para casa, a fase em que um risco que se tome vale por dois ou por três. Coragem não é só atacar muito e com muitos, pressionar lá à frente, apertar os outros como se fosse piores do que são. É também saber que para os croatas não serem bons no que fazem talvez seja preciso a seleção não ser como costuma. Portugal começa prudente, Ronaldo e Nani na linha do meio campo, à espera, sempre no espaço entre Corluka e Vida e os laterais. Por ali não podem passar passes, a bola tem que ficar nos centrais, eles que a tenham, e isso é bom, porque são os que pior a tratam.

O que melhor o faz fica para Adrien, o maior mostra de que Fernando Santos dá de ser grande na analogia entre coragem e o que está entre as pernas. O médio que nunca jogara não deixa Luka Modric jogar como quer. Adrien não é como a sombra que deixa Peter Pan e vai à sua vida, ele é a sombra que tira vida ao croata na partida. Vai com ele, aperta-o, não o deixa à vontade para lá do meio campo, é chato, sobre um degrau na intensidade quando o craque do Real Madrid tem a bola perto dele. O que é raro. Tão raro como o é Rakitic receber a bola entre William e a defesa, mesmo que se mexa como poucos e se desmarque como um matreiro cuja arte é enganar os outros. Esta conversa pode ser chata, e é, mas a Croácia joga pouco por Portugal defender muito e bem e se resignar a fazê-lo.

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Os croatas também falham nos passes ao centro, não encontram Rakitic, deixam o risco só para Modric, não jogam rápido para libertarem Perisic. A seleção é paciente, mal arrisca, e mantém simples e ao primeiro toque as bolas que recupera de um lado para as rodar rapidamente para o outro. Só que aí encrava, tem de esperar demasiado quando se aproxima da área, os jogadores estão longe, Nani é pouco para se cruzarem bolas. Também é muito pouco o cabeceamento com que, na pequena área, Pepe remata a bola pouco por cima da barra (25’), num livre de Raphaël Guerreiro.

Não há pontapés que acertem na baliza até ao intervalo, nem quando o cérebro de Nani encrava, entrega a bola a Badeji, que está um metro ao lado, e o croata lança logo Perisic para o um para um que ele gosta, com Guerreiro. Livra-se dele para dentro, remata com o esquerdo e acerta na malha lateral. Eles são perigosos assim, a serem ladrões e a fugirem rápido do local do crime, mas é a única vez que a seleção perde uma bola parva. Os portugueses defendem muito, muitas vezes bem, só que mal atacam e, quando o fazem, é com pouca gente. Os croatas estão desconfortáveis na partida e Portugal fica confortável na forma como os anula. Mas o futebol não é só defender os outros. Fernando Santos que atacá-los, fazer-lhes mal. Arriscar.

LENS, FRANCE - JUNE 25: Luka Modric of Croatia controls the ball under pressure of Adrien Silva of Portugal during the UEFA EURO 2016 round of 16 match between Croatia and Portugal at Stade Bollaert-Delelis on June 25, 2016 in Lens, France. (Photo by Clive Mason/Getty Images)

Foto: Clive Mason/Getty Images

Os tomates da coragem engrandecem.

Nem cinco minutos passam na segunda parte e muda tudo. Dá risco à equipa, afasta os jogadores entre eles, tira André Gomes para colocar Renato e aproximar Adrien de Ronaldo, afastando Nani e João Mário para os lados. O 4-3-3 abre espaços no jogo e faz com que os croatas usem melhor a bola que têm a mais. Rakitic começa a receber passes longe de William, os laterais recebem bolas para cruzar e os portugueses correm mais a defender. Brozovic remata na área, de primeira, uma bola que Rakitic cruza rasteira e para trás. Por cima da baliza (52’). O jogo agita-se, as equipas atacam mais rápido, há mais perdas de bola, Nani e Ronaldo afastam-se da bola, os passes sem risco passam a ser arriscados. A seleção põe-se mais a jeito e obriga a Croácia a pôr-se também.

Só que este vai-não-vai engole as equipas, fá-las recear as bolas perdidas, pensam duas ou três vezes perto da área, esperam segundos em vez de rematarem. Como o segundo em que Renato se deslumbra pela facilidade com que, a gingar, tem finta curta para fugir a Badeji, tabelar com João Mário e ficar com a entrada da área só para ele. O remate é rasteiro, à balda e sai muito ao lado da baliza (57’). Nada mais de ligeiramente perigoso fala em português, nem o remate que Nani faz com o ombro, na área, enquanto leva um pontapé de Vida (62’) no tronco. Duvida-se de um penálti e também se têm dúvidas como esse central croata atira por cima da barra a bola que cabeceia sozinho, na área, após um livre de Srna (64’).

A seleção que mais remata no Europeu não acerta um na baliza e os croatas acham isso um bom exemplo. As equipas deixam de tentar colocar jogadores em posição de chutar a bola à baliza, tenta-se pouco pelo centro e muito pelos lados, preferem — sobretudo a Croácia — tentar cruzamentos e chegar com atalhos a quem possa rematar dentro da área. Qual quê, as bolas de qualidade são poucas, escasseiam à medida que a energia vai ficando pouca. Quem perde vai para casa e todos parecem querer ganhar tempo para o prolongamento. A Croácia tem mais bola e faz mais passes que são mais oportunidades para Pepe livrar a seleção de tudo o que chega à área.

Fernando Santos pode ter coragem para mudar muitas coisas, mas quem está no relvado, a correr, não os tem grandes para arriscar no ataque. O quarto empate e segundo nulo da seleção chega com apupos a virem das bancadas. São 90 minutos sem bolas a acertarem nas balizas e mais 15 seguem-se. O prolongamento estende a secura de oportunidades e a partida continua uma seca à exceção da bola que torna evidente o quão sofre José Fonte com o espaço que tem nas costas. Demora a virar-se, é lento a arrancar, não chega a Kalinic e o avançado — única substituição que a Croácia faz, aos 88’ — remata ao lado, já na área. O jogo é uma abundância de prudência e uma secura de riscos até aos 116’.

Aí acontece tudo. Pepe é notícia porque falha pela primeira vez, foge da área para se antecipar a Brozovic, mas deixa-o fugir e soltar Perisic, que cruza rasteiro e Kalinic quase desvia. O ver se te avias continua e, na recarga da jogada, a bola vai ao poste esquerdo da baliza de Patrício. Só que não sai do campo e sai antes num contra-ataque à boleia de Renato. Ele corre, solta Nani na esquerda, que usa a ponta da bota direita para um remate rasteiro que se torna num passe para Ronaldo. Ele chuta, Subasic defende, a sobra é de Quaresma, a cabeça dele marca. É de loucos, o festejo que faz todos irem para o relvado e o facto de os dois remates que acertam nas balizas acontecerem ao mesmo minuto.

LENS, FRANCE - JUNE 25: Domagoj Vida (C) of Croatia reacts after his shot wide during the UEFA EURO 2016 round of 16 match between Croatia and Portugal at Stade Bollaert-Delelis on June 25, 2016 in Lens, France. (Photo by Paul Gilham/Getty Images)

Foto: Paul Gilham/Getty Images

Os quartos-de-final estão a quatro minutos, é preciso coragem, agora sim, para os aguentar. Porque os croatas vão com tudo, atacam com todos, o guarda-redes vai para a área e, no meio desse esforço, Vida tem um remate acrobático que faz a bola rasar o poste. Que susto, que tremideira, que sofrimento. E que festa quando o árbitro acaba com duas horas sofríveis que pelo meio tiveram um minuto de emoção, só isso. Um jogo rico no xadrez das posições dos jogadores e na cautela foi bem pobre em risco e jogadas perigosas, que fazem os adeptos tirarem o rabo das cadeiras. Houve muita coragem para mudar muito as coisas, viram-se poucos tomates do tamanho que Fernando Santos queria antes do jogo para refletir isso no campo.

Mas houve-os para a seleção estar nos quartos-de-final do Europeu e marcar na agenda um encontro com a Polónia, em Marselha. Porque os tomates de coragem que se viram foram para a seleção se manter sólida, organizada, paciente num jogo em que não jogou como costuma e foi menos que os croatas em tudo o que teve a ver com a bola. Tê-los no sítio compensou.