Nome: Levante-se o Réu Outra Vez
Autor: Rui Cardoso Martins
Editor: Tinta-da-China
Páginas: 344
Preço: 16,90€

Levante-se-o-réu-outra-vez

Ao contar a história de um homem acusado de agredir um amigo por ciúmes da mulher, Rui Cardoso Martins conclui que “todas as coisas têm uma explicação e normalmente é sempre a mesma” (p.25). Se, depois de lida a colectânea de narrativas de casos jurídicos publicados ao longo de vinte anos no Público, esta conclusão parece acertada, uma vez que os motivos para os crimes narrados nunca são propriamente originais ou surpreendentes (sendo quase sempre a justificação para os mesmos uma mulher elegante, drogas, dinheiro ou vizinhos incomodativos), a verdade é que nunca nos fartamos de ser guiados a uma mesma explicação, já que o caminho narrado por Cardoso Martins, embora chegue repetidas vezes a um mesmo ponto, é, todavia, por paradoxal que pareça, permanentemente novo.

Mais do que nos permitir conhecer o dia-a-dia dos tribunais de instrução criminal portugueses (sem a sempre aborrecida parte de termos que responder por alegados crimes), Levante-se o Réu Outra Vez revela o talento para contar histórias e o virtuosismo literário do autor, virtuosismo esse que António Lobo Antunes elogia, louvando a fluidez do andamento das palavras e a naturalidade com que o humor surge.

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A extrema competência literária de Cardoso Martins manifesta-se na construção cuidada e pormenorizada das suas narrativas, onde cada metáfora está sempre dependente de um contexto que lhe confira um sentido, sendo portanto ao mesmo tempo uma metáfora e uma metonímia. Ao falar de um madeirense detido num avião, é dito que os dedos dos pés deste espreitavam “como bananinhas pelos buracos das peúgas” (p. 135), sendo, portanto o termo de comparação (‘bananinhas’) definido a partir de um critério metonímico de vizinhança com a personagem da história, neste caso, um madeirense. O mesmo acontece, por exemplo, quando se conta o caso de um homem com graves perturbações mentais que o levam a enviar cartas ameaçadoras cobertas de suásticas, dejectos humanos e outras coisas igualmente desagradáveis a um funcionário da Direcção Geral de Viação. Ao falar da caligrafia desta personagem, Cardoso Martins descreve as suas letras como “torcidas, negras, caóticas e grossas como pêlos púbicos” (p. 28). Novamente, o termo de comparação escolhido pelo escritor (‘pêlos púbicos’) é definido pelo contexto da história. Se estes pormenores, sendo reveladores do rigor literário do cronista, são relativamente irrelevantes, o mesmo não se pode dizer dos momentos de humor fino e altamente corrosivos que povoam as crónicas, como quando nos é dito que “Ana vendia flores na estação de metro do Colégio Militar, uma coisa muito proibida naquele local” (p. 71), ou quando se explica que “o Vasco era um garoto do Portugal Novo, que é só um bairro” (p. 271), ou ainda do extraordinário momento em que se conta a história de um jovem que sobrevivera a um tiro à queima-roupa graças a um fio de ouro que a mãe lhe tinha oferecido que desviara a bala e Rui Cardoso Martins conclui dizendo “a sorte do fio da mãe” (p.279).

Rui Cardoso Martins conta cada uma das suas histórias de uma forma labiríntica, procurando sempre ao mesmo tempo revelar-se e esconder-se, enquanto altera subitamente a nossa perspectiva acerca da inocência ou culpa dos réus que vai apresentando, sem nunca embarcar em histerismos, em frases feitas ou em clichés acerca do estado da justiça em Portugal. As únicas ilações teórico-filosóficas a que o escritor chega nestes artigos são coisas parecidas com “não quero precipitar conclusões científicas, mas um conjunto de observações que fiz esta semana leva-me a desconfiar que a droga faz mal. Faz mal às pessoas em geral, e aos drogados em particular” (p.107), porque, mais do que compreender o funcionamento do sistema judicial nacional ou a natureza humana, o autor parece interessado em contar a história dos momentos em que “o livre curso da Justiça esbarra na difícil categoria dos ‘casos humanos’” (p.72), ou seja, a história dos momentos em que o Código Penal é insuficiente para julgar e punir pessoas que são mais do que meros cidadãos portadores do CC nº 1294350.

Ao contar as histórias com que se cruzou durante vinte anos (e a que deu títulos tão extraordinários como O Talhante Artista Marcial ou Direito a Pensar e Pneus), Cardoso Martins olha sempre para cada indivíduo como uma pessoa e não como o representante de uma classe social oprimida pelos meandros da Justiça, o que lhe permite contar histórias ora divertidas, ora comoventes sem nunca perderem a novidade nem cederem ao sentimentalismo barato, tal como Lobo Antunes sugere, no prefácio que acompanha o livro, ao dizer que “não é preciso mexer nas pessoas para gostar delas” (p.13). Mesmo que Cardoso Martins reconheça que “às vezes, foda-se esta merda, um gajo tem de gritar” (p.264), os gritos que se fazem ouvir no livro não são nunca estridentes. Ao narrar, por exemplo, o caso de dois polícias que morreram atropelados por um adolescente alcoolizado, o seu profundo desacordo com a decisão do tribunal em praticamente absolver a inconsciência do rapaz, deixando angustiadas as famílias das vítimas, é expresso de forma tremendamente violenta e serena, apenas na última frase, onde é dito que “o rapaz pegou no telemóvel e foi telefonar. A irmã de um dos guardas mortos pegou no lenço e foi chorar” (p. 80). Porque no meio da gritaria causada por velhas más como as cobras, polícias tresloucados, mulheres traídas e vingativas e homens que, vítimas da sua própria ira e estupidez, atiram os seus dentes (felizmente postiços) contra a parede, é a voz calma e sarcástica de Rui Cardoso Martins que nos chega sempre da última fila do tribunal em Levante-se o Réu Outra Vez.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.