Numa altura em que é reeditado o romance “O Manto”, de Agustina Bessa-Luís, é de fazer a pergunta: quem são hoje os leitores da autora? Quem é que, na era dos livros de auto-ajuda e dos romances históricos de venda em barda, se revela capaz de tirar as suas horas para ler uma escrita exigente, uma pulsão para desconstruir lugares comuns, uma pesquisa complexa e provocadora da natureza humana, sem apresentar receitas e promessas de um futuro melhor?
No livro Agustina por Agustina (Dom Quixote, 1986), a própria, numa entrevista a Artur Portela, é convocada a definir o tipo de leitores que teria na altura:
Encontro-os por todo o lado. Gente das letras, burgueses um bocado complicados a quem a vida desilude e o coração oprime; jovens a quem a heroicidade do talento comove sempre. Acho que são esses”.
Serão os mesmos que a lêem 30 anos depois? Escritores, gente que pensa, rapazes e raparigas à procura? Não sabemos mas é bom que se mantenha quem valorize esta escrita maior.
Agustina, essa, nunca manteve ilusões quanto ao assunto. Chegou a registar um pensamento que pode ser hoje encontrado no Dicionário Imperfeito (Guimarães Editores, 2008): “Eu acho que a literatura é uma forma de mediocridade com implicações fiscais, como qualquer outra mediocridade. Às vezes há surpresas, mas delas nada consta, senão um século depois. Mas para quê continuar?”.
Logo no início de O Manto há uma descrição impressiva do Porto, apresentado como uma “cidade do entardecer e uma presa nocturna”. Lugar habitado por figuras, como é habitual nos seus romances, feitas de cumes e ravinas psicológicas, cheias de contradições, sublinhadas de uma forma superior por uma pena, como se sabe, vocacionada para reflexões inesperadas e aforismos para além do óbvio. A obra, editada pela primeira vez em 1961, é uma história feita de muitos mistérios, narrativas e relações, sempre sob a sombra da história de Job e dos novos filhos que, depois dos martírios, acaba por vir a ter.
O amor, sentimento que um dia caracterizou como “o invisível no habitual”, mora neste livro – e, claro, também o seu desvanecimento irremediável e a impossibilidade de se consagrar por completo e com duração. Relações várias entre figuras locais aqui se estabelecem, num novelo de dimensão universal, procurando não desvendar os enigmas da existência (tarefa impossível para qualquer mente lúcida) mas fazê-los cruzar no jogo sério da literatura.
Que os livros não digam tudo
A autora de A Sibila e de A Corte do Norte organiza um desfile de personagens de diferentes vocações, da ajuda aos “precisados” aos criadores de caniches – Lourença, Filipe, Gracia, Capitão Marcelo, Camilo, Ângelo, Manuela e Álvaro Teles. Fazendo-as circular num ambiente de subtil misticismo e usando algumas referências cultas, de Shakespeare a Goethe, passando por Dante, detém-se nelas, caracteriza-as com demora labiríntica para depois fazê-las sucumbir a uma falência relacional.
Nunca há, nestes laços, luzes inequívocas e prolongadas. Há, por exemplo a relação que se vai apagando entre Gracia e o capitão Marcelo, sempre acompanhada de uma criada interna. Ou então, ainda no emaranhado de sentimentos falhados, a relação entre Lourença, mulher dedicada a aliviar os pobres, desde que estes mantivessem as “virtudes próprias dos vencidos”, encolhida na infância e depois dotada de uma “espécie de cinismo amável perante as catástrofes” e Filipe, recluso no seu quarto, caracterizado como “o menos sentimental dos homens”, sem tempo para duvidar e sofrer mas capaz de escrever cartas em que prometia cartas mistificadoras. Eram os dois coléricos na forma como conviviam, embora Lourença o visitasse com o objectivo de “pervertê-lo ao fluido do sentimento”. Não o consegue.
Todas estas trágicas e solitárias figuras são depois unidas numa reflexão compassiva que apela à ideia de que “a vida é como um manto”. Manto “em que se arrastam todas as fúrias e ternuras do mundo”. Ninguém está desabrigado e todos levantam-no “à altura do coração” e “deixam que ele caia no pó e o perdem nos caminhos onde acaba a história do homem”.
Antes de os leitores fecharem o volume, ainda são desenhadas meditações sobre o que é uma tragédia e uma história de amor e é deixada uma nota meta-literária sobre a importância de a literatura não se concentrar na tarefa nefasta de tudo querer dizer. Numa entrevista a Arnaldo Saraiva, incluída no número 12 da revista “Textos e Pretextos”, publicada em 2009, explica melhor essa convicção:
De certa ideia, os meus livros sucedem-se, não há o fim do livro, assim como na vida. As figuras podem desaparecer mas outras continuam a mesma história”.
Podemos encontrar algumas delas neste livro publicado originalmente entre os romances Ternos Guerreiros e O Sermão do Fogo, e agora reeditado pela Babel.
Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.