Podia ser uma fotografia como outra qualquer, capaz de ilustrar o amor entre mãe e filha. Acontece que a imagem publicada pela ex-cantora Victoria Beckham no Instagram tinha algo mais: um beijo na boca. O gesto deliberado foi o suficiente para fazer nascer uma polémica que, bem vistas as coisas, não é tão recente quanto isso. Afinal, os pais devem ou não beijar os filhos na boca?

A imagem partilhada pela designer de moda, a propósito do quinto aniversário da filha mais nova, recebeu uma onda de gostos (mais de 600 mil) e de comentários, como de costume. Mas entre as milhares de opiniões expressas publicamente pelos internautas estão algumas que desaprovam o beijo selado entre mãe e filha. As críticas têm sobretudo que ver com uma alegada falta de higiene, mas também com a conotação sexual que por norma é atribuída aos beijos na boca.

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Se perguntar a um terapeuta, [ele vai dizer que] isso não é necessário ou bom”, lê-se num dos comentários. “De onde venho isso não é normal, não por causa da conotação sexual, mas por causa da higiene e porque a mãe está claramente a beijar a criança e ela não tem nada a dizer sobre o assunto. Lembrem-se que o Instagram é global e para algumas culturas isto é muito difícil de assimilar”, diz outro.

Onde se critica também se elogia, com muitas pessoas a assumirem que, independentemente da idade, continuam a dar beijos na boca dos pais (há relatos de filhos com 50 anos que ainda o fazem). A polémica foi além desta rede social: no Twitter há muitos pais a partilhar imagens suas a beijar os filhos, num claro apoio à ex-Spice Girl, e na imprensa internacional estão outros tantos artigos a debaterem o tema. A BBC, a título de exemplo, deixa ficar a pergunta: “Quão controverso é beijar os filhos na boca?”.

Um gesto de amor ou um gesto despropositado?

“Para mim é um ato de carinho”, defende a psicóloga Mariana Cordeiro Ferreira, que trabalha com crianças numa base diária no Centro do Bebé, em Lisboa. A profissional que também é mãe explica que, considerando duas pessoas psicologicamente saudáveis, este é um “ato de afeto puro entre uma mãe e um filho, um pai e uma filha”. “É como dar um beijinho na cara. O problema é quando se começa a pensar demasiado nisso”, acrescenta. Importante é explicar aos mais novos que o beijinho na boca, quando existe, é um ritual de família que não deve ir além desse círculo.

Mas há círculos onde ele não chega de todo. Estrela Barradas garante ao Observador que nunca deu um beijo na boca ao filho de quatro anos por achar que esse é um “gesto íntimo de um casal”. Não os dá da mesma forma que nunca os recebeu (dos pais). “Acho que as crianças não pensam dessa maneira, são inocentes, mas a mim faz-me confusão”, argumenta, admitindo que prefere que o filho não dê beijos na boca a ninguém, até por uma questão de precaução. “Para ter de explicar a uma criança que há adultos que podem fazer isso com maldade… mais vale não dar beijos a ninguém.”

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Do lado oposto da barricada está Sara Timóteo que aos 35 anos ainda beija a mãe na boca. Com três filhos, não sabe precisar se já o fazia em pequena, mas adianta que com os dois mais velhos, de oito e seis anos, esse era um hábito recorrente. Com a idade, mas também pelo facto de ouvirem o pai dizer que não gostava, os miúdos deixaram de o querer fazer. Já Raquel Botelho (42) não concorda com a expressão “beijar na boca” e diz antes que beija os três filhos na cara, lábios incluídos. “Não diria que é um hábito, é um pouco indiferente ser nos lábios ou nas bochechas. É onde calhar. A partir de certa idade isto não fará sentido, tal como não fará sentido dar-lhes banho”, acrescenta.

À questão da segurança dos mais novos, abordada por Estrela Barradas, acrescenta-se o possível impacto na saúde — de recordar que alguns comentários à fotografia de Victoria Beckham põem em causa a higiene das crianças. Sobre isso, a pediatra Rosa Gouveia argumenta que o tal beijo lábio com lábio “não tem mal absolutamente nenhum”. “Não há risco de infeção porque estamos a falar de pessoas [pais e filhos] que convivem habitualmente umas com as outras, não são desconhecidos”, diz a profissional que é membro da direção da Sociedade Portuguesa de Pediatria do Neurodesenvolvimento. O único risco de contágio existe quando um dos pais está doente, mas aí entra o senso comum para impedir tais afetos.

Uma questão cultural

Rosa Gouveia não aprova nem desaprova o beijo na boca e defende que os pais devem fazer aquilo que lhes apetecer. “Beijar uma criança na boca é um beijo muito superficial, é como beijar na ponta do nariz. Há culturas que o fazem mais do que outras”, afirma a pediatra. O sociólogo Jorge de Sá, docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, não hesita em corroborar a afirmação:

O beijo é uma questão cultural, depende muito das sociedades em que é praticado. O beijo na boca é uma expressão de carinho que tem uma conotação sexual nas nossas sociedades, mas noutras um beijo na face pode significar o mesmo. Na cultura portuguesa é menos consensual o beijo entre pais e filhos.”

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Getty Images/iStockphoto/© Alena Root

A também psicóloga Fátima Almeida partilha da mesma opinião, admitindo que na cultura portuguesa há quem possa ser mais conservador e que, por isso, encare o beijo na boca como um ato de caráter sexual. “Há quem defenda que a boca é uma zona erógena e que por isso está reservada à intimidade do casal e não dos filhos”, argumenta a psicóloga, que salienta ainda a importância de os pais explicarem às crianças as diferenças de um beijo para o outro.

Com o crescimento elas podem começar a achar estranho o facto de também receberem um beijo na boca. Se crescerem com a ideia de que esse é um gesto natural, então não o vão questionar. Caso contrário é preciso que os pais expliquem a diferença”, afirma Fátima Almeida.

Embora não veja nada de mal no ato, a psicóloga Mariana Cordeiro Ferreira fala também em limites, ou seja, o beijo na boca deve cessar a partir do momento em que a criança já não o quiser. “O limite é se houver algum desconforto”, diz, ao mesmo tempo que refere que o problema existe quando, perante o afastamento natural e espontâneo de um filho, o pai ou mãe continua a insistir no beijo na boca. “Aí podemos pôr em causa o equilíbrio emocional.”

E o que dizer de quem sexualiza essa demonstração de afeto? “Depende da perceção das pessoas”, argumenta Mariana Cordeiro que, lembrando que cada caso é um caso, fala em situações onde possa existir uma perceção desajustada da própria intimidade. “Acho que as pessoas não estão ao nível da inocência de uma criança e põem maldade em tudo.” Já Fátima Almeida adianta que o ideal será não expor este comportamento em público, até porque é isso que faz gerar tanta polémica. É que o afeto, seja com um beijo na boca ou na bochecha, “deve ser dado na esfera familiar”.