Pelo menos em Portugal, é bem conhecida a frase do socialista Jorge Coelho, que num congresso do seu partido em 2001 disse que “quem se mete com o PS leva!”. Mas, saindo de Portugal, e metendo a quinta mudança na máquina do tempo para só parar na madrugada de 21 de julho de 2016, o que dizer daquilo que se passou no terceiro dia da Convenção do Partido Republicano, em Cleveland, Ohio? Para começar, algo óbvio: quem se mete com Donald Trump leva — ou mais exatamente, é apupado.

O penúltimo dia da convenção republicana começou frouxo, com intervenções algo atabalhoadas, com oradores pouco preparados e, simplesmente, nada dados a falar em público. Mas isso mudou quando um dos homens mais aguardados da noite subiu ao palco: Ted Cruz, o senador ultraconservador do Texas que foi derrotado nas eleições primárias por Donald Trump.

A expectativa em torno do discurso de Ted Cruz era muita. Quando subiu ao palco, o texano ainda não tinha apoiado publicamente Donald Trump para as eleições de 8 de novembro, apesar de ter prometido num debate durante as eleições primárias de que votaria no candidato republicano à Casa Branca, fosse ele quem fosse. Além disso, os apoiantes Ted Cruz foram aqueles que mais objeções levantaram na Convenção do Partido Republicano, naquilo que foi um último esforço — sem sucesso — para impedir a nomeação direta de Donald Trump, que acabou por acontecer.

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Ted Cruz não declarou o seu apoio a Donald Trump e, em troca, foi fortemente apupado pelo público

E foi precisamente por aí que Ted Cruz iniciou a sua intervenção. “Quero felicitar Donald Trump por ter vencido a nomeação do nosso partido”, disse, para nunca mais repetir o nome ao candidato do Partido Republicano às eleições presidenciais de 8 de novembro.

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A partir daí, nos 15 minutos que se seguiram, Ted Cruz arranjou tempo para pegar em vários temas que são recorrentes nas suas intervenções e também para fazer referência ao caso particular de Michael Smith, polícia de Dallas assassinado a 7 de julho por tiros de sniper. O senador texano contou a história daquele polícia que, quando saiu de casa nesse dia, fez uma pergunta à sua filha de nove anos que acabou por ser fatídica: “E se esta for a última vez que nos vemos?”.

Cruz aproveitou a frase e transportou-a para o contexto eleitoral.“E se esta for a última vez, o nosso último momento para fazer algo pelas nossas famílias e pelo nosso país? Será que vivemos à altura dos valores que dissemos que defendemos? Fizemos tudo o que podíamos? Isso é o que importa em eleições”, disse. “Todos nós queremos dizer aos nossos netos que fizemos o melhor pelo nosso futuro e pelo nosso país.” O público aplaudia-o.

Logo de seguida, pegou no tema da “liberdade”, que lhe é caro. Depois, referiu que os EUA são atualmente “uma nação dividida”. E mais tarde virou o discurso, num twist que já estava escondido com a cauda de fora: “Mas há uma visão melhor para o futuro”. “Um regresso à liberdade”, resumiu, que deve passar pela educação, pela saúde, pelos impostos e até pela Internet.

A cama estava feita para Ted Cruz continuar o seu discurso e dizer, como tantos outros fizeram, algo como “… e o homem certo para isso é Donald Trump”. Mas não. Tal como tem sido até agora, este não foi o dia para Ted Cruz apoiar o homem que durante a campanha o cunhou de “mentiroso” (Lying Ted foi a alcunha arranjada por Trump), fez pouco da aparência física da sua mulher e deixou no ar que o seu pai tinha estado envolvido no assassinado de JF Kennedy. Em vez disso, Ted Cruz deixou um pedido vago à audiência:

“Votem com a vossa consciência. Votem em candidatos que vocês acreditem que defendem as vossas liberdades e que vão ser fiéis à Constituição.”

Ted Cruz estava longe do fim do seu discurso, mas mais valia que o terminasse logo naquele momento. Quando percebeu que o texano no palco não estava disposto a apoiar publicamente Donald Trump, a plateia quase na sua totalidade ergueu-se e começou a gritar: “Apoia o Trump! Apoia o Trump!”. Cruz ignorou os cânticos tanto quanto pôde, arranjou ainda tempo para repetir, como é seu hábito, a história do pai, que “fugiu da prisão e da tortura em Cuba” e que “chegou aos EUA apenas com 100 dólares escondidos nas cuecas”. Mas já ninguém estava a ouvi-lo. No final, paradoxalmente apelou precisamente àquilo que parecia impossível obter naquele momento. “Vamos unir o partido”, disse, ao mesmo tempo que Donald Trump entrava na bancada VIP da Quicken Loans Arena.

Pouco depois de Ted Cruz falar, a palavra foi dada a Newt Gingrich, populista veterano do Partido Republicano, que se esforçou para explicar aquilo que aparentemente gostava que o texano tivesse dito de forma inequívoca e direta. “Ted Cruz, que é um orador soberbo, disse que devemos votar com a nossa consciência em qualquer pessoa que cumpra a Constituição. E nestas eleições só há um candidato que cumpr ea Constituição”, disse. “Por isso, para parafrasear Ted Cruz, se quiserem proteger a Constituição dos Estados Unidos, a única opção possível nestas eleições é a candidatura republicana de Trump e Pence”, Gingrich justificou-o. Mas já era tarde de mais.

Trump sobre Cruz: “Não tem importância”

Nos bastidores da convenção, o discurso de Ted Cruz não terá caído bem na maioria das pessoas. Segundo a CNN, o senador texano foi insultado por várias pessoas enquanto caminhava juntamente com a sua mulher, Heidi Cruz, nas zonas de acesso restrito da Quicken Loans Arena. Ainda de acordo com aquele canal, um líder estadual do Partido Republicano “reagiu tão agressivamente” contra Ted Cruz que teve de ser agarrado.

Horas depois, já quando o terceiro dia da convenção tinha terminado, Donald Trump reagiu à polémica de Ted Cruz no Twitter. “Uau, Ted Cruz foi vaiado do palco para fora, não honrou aquilo que jurou. Eu vi o discurso dele duas horas antes, mas mesmo assim deixei-o falar. Não tem importância”, escreveu.

Este foi, sem margem para dúvidas, o momento mais tenso da Convenção do Partido Republicano — tão tenso que será difícil ultrapassá-lo nesse aspeto, com um dia ainda a faltar para o fim do evento.

Até porque, neste momento, a Convenção do Partido Republicano, o partido e, aparentemente, Donald Trump parecem estar dispostos a esquecer as agruras de umas eleições primárias conturbadas e focarem-se no seu maior objetivo: derrotar Hillary Clinton.

À semelhança do que já tinha acontecido nos dois primeiros dias da Convenção do Partido Republicano, o nome da presumível candidata do Partido Democrata às eleições presidenciais que voltou a ser um dos mais evocados. Nos discursos que abriram a sessão desta quarta-feira — em grande parte atabalhoados e pouco entusiasmantes, à exceção da intervenção de Laura Ingraham, apresentadora de um talk-show conservador —, bastou aos oradores referir o nome de Hillary Clinton para que o público respondesse de forma quase automática, gritando para que esta fosse presa. “Fechem-na à chave! Fechem-na à chave!”, entoavam.

No entanto, o discurso final da noite serviu para mudar de agulha. Juntamente com a intervenção de Ted Cruz, esta era uma das mais esperadas da noite: a de Mike Pence, o homem escolhido por Donald Trump para seu vice-Presidente. Mas se o nível de expectativa era semelhante àquele que se formou em torno do discurso do texano, o resultado foi diametralmente oposto: ao passo que o texano dividiu o partido, o vice de Trump pelo menos tentou pegar nos cacos e colá-los o melhor possível.

“Cristão, conservador e republicano, nesta ordem de importância”

No início do seu discurso, tratou de se apresentar, descrevendo-se como um “cristão, conservador e republicano, nesta ordem de importância”. Falou da sua juventude “numa pequena vila no Sul do Indiana”, onde viu os pais “a construir tudo o que realmente interessa: uma família, um negócio e um bom nome”. E apesar de admitir que o primeiro contacto que teve com a política partidária foi “no outro partido” — esta não foi, de longe, a primeira vez que alguém se referiu ao Partido Democrático desta maneira nesta convenção —, bastou referir um nome sagrado entre republicanos para arrancar um longo aplauso. “Entrei na política no outro partido, até que ouvi a voz e os ideais do 40º Presidente e aderi à ‘Revolução de Reagan’.”

Ainda sobre o “outro partido”, Pence acusou-o de “abandonar aqueles que costumava proteger, talvez porque estão demasiados entrincheirados no poder”. Outra ocasião em que recebeu um longo aplauso do público foi quando criticou os democratas e a sua prestação na economia.

“Eles dizem-nos que esta economia é o melhor que podemos ter”, queixou-se. “Mas isto não é o melhor que nós podemos ter. Isto é antes o melhor que eles nos conseguem dar!”.

Sobre Hillary Clinton em particular, e tocando no assunto da nomeação do substituto do juiz Antonin Scalia no Supremo Tribunal, Mike disse que se os norte-americanos elegerem a candidata democrata, “é bom que se habituem a sujeitarem-se a juízes não-eleitos que usam o seu poder para tomarem decisões inconstitucionais”.

E, claro, falou sobre Trump, algumas vezes com humor. “Donald Trump é um homem conhecido pela sua personalidade grande, estilo colorido e muito carisma”, disse, usando uma expressão facial que deixava perceber que também ele sabia que acabava de usar um eufemismo.

Mas também falou das características mais pessoais de Donald Trump, talvez obtendo mais sucesso na hercúlea tarefa de “humanizar” o magnata nova-iorquino perante o público em geral do que todos os outros que o tentaram nesta convenção — e não foram poucos, já que quatro membros da família Trump já discursaram e amanhã ainda falará Ivanka, a filha mais velha do milionário.

“Vocês nomearam para Presidente um homem que nunca desiste, um homem que nunca recua, um lutador que esteve sozinho e contra todas as probabilidades, mas que nesta semana, com este partido unido, tem apoio”, disse numa altura. “A sua genuidade, o respeito que ele tem com as pessoas que trabalham para ele e a devoção que ele tem com a família…”, evocou, para depois dar um exemplo: “Se não acreditam em mim, então digo o que dizemos lá em casa: ‘É impossível fingir que temos bons filhos’. Quão espetaculares são os filhos dele? Não são qualquer coisa?”.

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No final do discurso de Mike Pence, Donald Trump subiu ao palco para abraçá-lo e dar-lhe um beijo na cara

E mais tarde tornou a descrevê-lo, desta vez como “um homem à sua maneira, um americano da mais alta categoria”. “Em que outra parte do mundo é que um homem como ele teria seguidores como os que ele tem que não na terra dos livres e corajosos?”, lançou em jeito de pergunta retórica. Mesmo assim a resposta chegou-lhe, na forma de uma plateia de pé a aplaudi-lo a alto e bom som — mas ainda não ao mesmo nível sonoro com quem vaiou Ted Cruz.

Esta quinta-feira, às 00h20, começa o derradeiro dia da Convenção do Partido Republicano mais improvável de que há memória, com um outsider que quebrou todas as regras que havia para quebrar a chegar ao lugar mais cimeiro que alguém pode atingir dentro do partido dos conservadores norte-americanos. Resta saber se o seu discurso de encerramento será suficiente para unir o partido que, aos poucos, e a custo, tem moldado à sua figura.