José de Matos chega à comissão de inquérito praticamente cinco anos depois de ter iniciado funções como presidente executivo do banco do Estado. O futuro ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos é o primeiro a prestar esclarecimentos e está numa posição especialmente incómoda. Já não é o presidente da confiança do atual governo, há vários meses que está de saída, e não estará sequer envolvido na negociação do plano de recapitalização, mas ainda é do ponto de vista legal e formal o presidente da CGD. Será a primeira vez que José de Matos fala publicamente sobre a situação no banco. Mas na carta de demissão escrita ao acionista, já tornou claro o seu desconforto com o desgaste que as mudanças anunciadas para a Caixa tem vindo a causar.

1. Porque demora tanto a mudança de administração da Caixa

A entrada de uma nova administração será, provavelmente, um dos temas incontornáveis na audição a José de Matos. Desde janeiro, no mês que se seguiu à tomada de posse do governo, que há notícias sobre a vontade de substituir a administração da Caixa. Nada de estranho, aqui. O mandato da atual gestão terminou no final de 2015 e a mudança das caras, a par com a mudança de cores, era mais do que esperada.

Mas o tempo passou, os resultados de 2015 foram apresentados e aprovados em assembleia geral, mas a nomeação dos órgãos sociais continua a marcar passo.

Em abril, saíram as primeiras noticias que apontavam para a escolha de António Domingues, vice-presidente do BPI, para assumir a liderança da Caixa. Em junho, foram conhecidos mais nomes de peso para a equipa, entre os quais Rui Vilar e Leonor Beleza para administradores não executivos. O novo conselho teria 19 elementos. No mesmo mês, o ministro das Finanças, Mário Centeno, manifestou a convicção de que a nova gestão entraria em funções até ao final de junho. O processo estaria já nos reguladores que têm de validar uma equipa como um todo, cada um dos seus elementos e o modelo do governo proposto. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, até prometeu uma nova gestão em 12 dias.

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Mas ninguém pode apressar os timings dos reguladores, sobretudo quando a última palavra é do Banco Central Europeu, que ficou com a supervisão da Caixa, um banco sistémico no mercado português. Ainda que muito do trabalho de avaliação de idoneidade e competências passe pelo Banco de Portugal, que é quem está no terreno, a decisão é formalmente do BCE, que pode demorar dois a quatro meses para a emitir.

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António Domingues, o homem apontado para liderar a administração da Caixa Geral de Depósitos

Sabe-se que os nomes chegaram tarde e que a proposta para a administração da Caixa levantou reservas na equipa conjunta do BdP e do BCE que está a analisar o dossiê: demasiados cargos, muitos nomes vindos de um banco concorrente (o BPI), falta de experiência de banca em algumas personalidades indicadas e a concentração dos cargos de presidente executivo e não executivo em António Domingues.

Entretanto, a equipa liderada por José de Matos já apresentou a demissão, com efeitos a partir de final de julho. Mas como ainda não há sucessores, a atual gestão terá de ficar no cargo, uma espécie de limbo, sem receber orientações do Estado — o que está a prejudicar ainda mais a situação de incerteza no banco. Os administradores em exercício poderão até substituir o pedido de demissão já apresentado por um novo, só para dar folga para entrar a nova administração. Atuais gestores só aceitam ficar com indicação por escrito. E a Caixa não pode ficar sem administração.

2. A Caixa precisa mesmo de quatro mil milhões? Cinco mil milhões?

As necessidades de capital do banco do Estado são o ponto central da comissão parlamentar de inquérito que foi imposta pelo PSD, de forma potestativa, com a intenção assumida de influenciar a decisão que o governo vai negociar com as instâncias europeias. E a dimensão do aumento de capital com dinheiros públicos é a principal interrogação.

As necessidades de recapitalização da Caixa Geral de Depósitos não são uma surpresa para os partidos que estiveram no governo até dezembro. Desde a primeira metade do ano passado que se antecipava que seria necessário mais capital para, por um lado, acomodar novas exigências regulatórias a partir de 2017, mas também porque alguns pressupostos para a evolução da atividade da Caixa não se cumpriram.

A gestão ainda em funções chegou a propor um plano ao executivo de coligação PSD-CDS que permitia um reforço da solidez financeira da Caixa sem a entrada de dinheiro fresco. A otimização do balanço, com algumas opções contabilísticas, como anular, reduzir ou adiar provisões já constituídas, dentro do cumprimento das recomendações dos auditores, permitiriam ao banco responder às exigências mínimas de capital, que seriam entre os 600 e os mil milhões de euros.

O número dos quatro mil milhões de euros começou a ser falado em maio e seria o valor na cabeça e na estratégia de António Domingues para a Caixa Geral de Depósitos. Mais do que resolver as necessidades imediatas de capital, uma recapitalização desta dimensão permitiria ao banco avançar com uma reestruturação mais musculada, sobretudo ao nível de efetivos e agências, limpar de vez as perdas do balanço e assegurar uma almofada confortável para o novo ciclo do negócio bancário.

O então ainda vice-presidente do BPI terá exigido um plano de quatro mil milhões de euros com luz verde de Bruxelas antes de se comprometer definitivamente com a Caixa. Apesar de, alegadamente, estar já em contactos para preparar a operação de recapitalização, António Domingues só renunciou ao cargo no BPI no final do mês de maio.

O valor de referência para o aumento de capital subiu para cinco mil milhões depois de António Costa ter explicado aos aliados à esquerda a operação. Este valor inclui um pacote financeiro para 2500 a 2600 rescisões e reformas antecipadas no banco público, fecho de balcões sobretudo no estrangeiro, uma folga para acomodar imparidades de crédito e um fundo para imóveis desvalorizados e empresas em reestruturação.

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Pedro Passos Coelho, ex-primeiro ministro, acha que a Caixa precisa de metade do valor que tem sido noticiado

É um número gordo que parece excessivo para muitos. Um deles é o ex-primeiro-ministro. Para Pedro Passos Coelho, a Caixa não deveria nem precisar de metade desse valor. O próprio ministro das Finanças, Mário Centeno, reconheceu que já que o montante pode baixar no quadro das negociações com a Comissão Europeia, sobretudo considerando que o governo tem de convencer que este é um investimento rentável que seria feito por um privado. Sem essa classificação, estamos perante uma ajuda de Estado, o que obriga à resolução da Caixa, e tem impacto no défice. E quanto maior for o cheque público para a Caixa, mais difícil será persuadir Bruxelas.

Ainda antes de se conhecer o que pensa Bruxelas, ficou-se saber que o BCE também torce o nariz ao valor. Numa análise preliminar, concluiu que é demasiado, sobretudo no que toca ao provisionamento de créditos em risco que deveria absorver mais de metade deste reforço. Tudo indica que o aumento de capital será inferior e, pelo menos numa fase inicial, pode ser faseado. José de Matos terá uma opinião fundamentada sobre o tema, já que tem acesso a toda a informação do banco público, apesar de a atual gestão não ter sido chamada a participar no plano que está em discussão.

O aumento de capital dependerá da vontade do acionista, mas ficará sempre dentro dos limites aceitáveis para o BCE e a Comissão Europeia.

3. E porque precisa a Caixa de mais dinheiro?

É outro tema obrigatório da primeira audição na comissão de inquérito ao banco público. Em 2012, a Caixa Geral de Depósitos recebeu 1.650 milhões de euros em fundos, da qual apenas 750 milhões de euros corresponderam a entradas de dinheiro fresco do acionista. Por opção do então governo, provavelmente com o dedo da troika, a Caixa teve de recorrer à linha de recapitalização do empréstimo internacional para obter 900 milhões de euros através de instrumentos de dívida convertíveis em capital (CoCos).

Foi uma opção que custou caro à Caixa. Esta operação foi tratada como uma ajuda de Estado, o que obrigou a negociar um plano de reestruturação com a Comissão Europeia que impôs o redimensionamento da instituição, venda de ativos e de participações e limites à atividade fora da banca. Por outro lado, o banco teve de pagar — ainda paga — juros anuais elevados — 90 milhões de euros, ao Estado.

Para além dos contornos da operação, pode-se questionar se a dimensão do aumento de capital foi suficiente, uma vez que a Caixa é o maior banco e a injeção de fundos no BCP foi de três mil milhões de euros. O valor foi na altura considerado suficiente, partindo de pressupostos sobre a evolução da economia, do mercado e do setor bancário. O plano então negociado com Bruxelas previa que o banco começasse a reembolsar os CoCos ao Estado a partir de 2014 e regressasse aos resultados positivos. Mas isso não aconteceu.

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A política de estímulos de Mario Draghi está a penalizar a rentabilidade dos bancos tradicionais

Em 2013, a política monetária do Banco Central Europeu tornou-se mais agressiva na resposta à crise. Uma das consequências foi a descida ainda mais acentuada das taxas de juro. Uma boa notícia para quem tem de pegar prestações de crédito, mas uma péssima notícia para um banco tradicional como a Caixa que tirava uma boa parte dos lucros da margem financeira assegurada pelos juros cobrados no crédito à habitação.

A bazuca do BCE ganhou força já este ano e deverá continuar a disparar, pelo que a era dos juros baixos, e até negativos, não deverá acabar tão depressa. Para a Caixa, que com as taxas na casa dos 2% consegue obter lucros na casa dos 700 milhões de euros anuais, os tempos continuam a ser de rentabilidade negativa. Uma economia que tarda em arrancar, com o crédito malparado ainda a crescer, são mais uma pedra no sapato do banco do Estado.

E depois aconteceu a resolução do Banco Espírito Santo e a falência do Grupo Espírito Santo, um episódio que agravou de forma não prevista as imparidades de crédito e as perdas reconhecidas no banco do Estado que já estava a digerir os prejuízos de empréstimos passados que entraram em incumprimento. O resto são as histórias das operações mais ruinosas feitas pela Caixa Geral de Depósitos. A maioria já era conhecida, mas o rasto de perdas que deixam ainda não se apagou.

4. A longa travagem do petroleiro

A comparação foi feita pelo atual presidente da Caixa. José de Matos foi buscar a imagem de um petroleiro para explicar mais um ano de prejuízos, o quinto desde 2011, com a pesada herança do passado e o tempo que tem demorado a sua resolução.

“Quando cheguei cá, há cinco anos, encontrei um petroleiro. Quando um petroleiro quer atracar em Lisboa quando chega ao Cabo de São Vicente já tem de vir a travar.”

Na apresentação das contas de 2015, o homem que lidera o banco público desde 2011 alertou para a limpeza de operações de crédito do passado que levaram ao reconhecimento de imparidades de cinco mil milhões de euros. Os maiores destes empréstimos estão na lista de grandes credores com créditos em risco ou incumprimento que foi revelada pelo Correio da Manhã, tendo por base uma auditoria regular de agosto de 2015.

Quase todas estas operações foram decididas antes do tempo da atual administração, mas como assinala o antigo ministro das Finanças, Campos e Cunha, os maus negócios na banca pagam-se cinco anos depois. Alguns destes negócios, porventura os mais polémicos, foram feitos durante a gestão de Carlos Santos Ferreira e Armando Vara — casos de Vale do Lobo e dos empréstimos aos acionistas do BCP. Mas há, também, operações e opções que foram decididas ou continuadas por outras administrações.

Alguns dos homens que passaram pela administração da Caixa nestes anos com o pelouro de áreas que vieram a revelar-se problemáticas, têm hoje responsabilidades noutras instituições, como Faria de Oliveira que lidera a Associação Portuguesa de Bancos ou Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal. E a sua atuação será seguramente escrutinada na comissão de inquérito.

Os tempos de José de Matos foram de austeridade, falta de capital, exigências regulatórias, restrições regulamentares e desconfiança do poder político e dos credores internacionais. Ainda que a vontade existisse, já não havia clima para os grandes negócios que praticamente desapareceram do horizonte do banco do Estado.

5. Como está a ser a gerida a transição no maior banco português

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O ministro das Finanças, Mário Centeno ainda não conseguiu fechar o dossiê Caixa Geral de Depósitos

Se o passado deve dominar os trabalhos desta comissão de inquérito, cujo objeto é a recapitalização e a gestão da Caixa Geral de Depósitos, a forma como o processo de mudanças tem sido gerido por este governo será também matéria de escrutínio. O ministro das Finanças, Mário Centeno, cuja audição termina a primeira ronda na sexta-feira — quinta-feira é ouvido o governador do Banco de Portugal — será a figura central no esclarecimento dessas questões:

A lenta e muito pública escolha de pessoas para a administração — com nomes a sair quase todos os dias — o aparente envolvimento do futuro presidente, ainda não nomeado, no plano de recapitalização da Caixa e a ausência dos órgãos competentes no banco na discussão sobre a reestruturação e o aumento de capital, o braço-de-ferro com Bruxelas e Frankfurt sobre o novo modelo de governo e a reorganização do banco, os aumentos salariais da administração, etc, etc, etc.

Na carta de demissão do conselho de administração, enviada em junho ao governo — ministro das Finanças e primeiro-ministro — e divulgada pela TSF, José de Matos desenrola um rol de críticas em que se destaca o indefinição que se vive no maior banco de Portugal.

Sem que tenhamos recebido qualquer orientação, aguardamos a Assembleia Geral de 25 de maio, a qual foi suspensa no ponto relativo à eleição dos novos órgãos sociais, sem agendamento de nova data para retomar os trabalhos e sem qualquer explicação aos membros deste Conselho de Administração sobre quanto tempo se esperava pudesse ainda durar a prorrogação dos mandatos que lhe era pedida.

Entretanto, dois administradores executivos cessaram funções, por justificadas razões profissionais e pessoais, reduzindo a Comissão Executiva a quatro dos seus sete elementos estatutários. A gestão da CGD vive numa situação precária. A importância e a natureza sensível do assunto levou-nos a avisar o sr. primeiro-ministro e o sr. governador do Banco de Portugal”.

O presidente executivo da Caixa aproveita ainda para alertar para os custos que esta situação tem trazido ao banco.

Reconhecemos ser cada vez mais difícil assegurar a condução da CGD e reparar os prejuízos causados pelo turbilhão de informação de incerteza. (…) Aguardamos em exercício de funções, na expectativa de que, em tempo útil, seja encontrado um desfecho favorável para esta situação crítica que aflige a CGD e muito penaliza o país”.

Além do arrastamento do impasse — ainda não se sabe quando entra a nova gestão, nem como será a recapitalização — a imagem do banco do Estado tem sofrido com a divulgação de informação sobre negócios alegadamente “ruinosos” que serão em parte responsáveis pela espiral de perdas no crédito. Um ruído que não é alheio à própria decisão de o PSD, apoiado pelo CDS, de avançar com uma comissão de inquérito a título potestativo, que acaba por ser mais um fator de pressão sobre a definição do futuro da Caixa que pode influenciar negativamente as discussões com as instâncias europeias.

E há consequências no negócio? Haverá decisões, projetos e créditos que podem ter sido colocados em stand by, à espera da nova equipa e de uma nova estratégia. Mas neste caso, o quadro de relativa estagnação da economia e de recuo no investimento, acaba por travar eventuais impactos negativos. Não há muitos novos negócios para a Caixa perder.