“Há algo delicioso em escrever as primeiras palavras de uma história. Não sabemos muito bem para onde nos levam”. Esta é uma das frases de Beatrix Potter, a autora e ilustradora britânica que deu vida às aventuras de Pedrito Coelho. Mas não só. Tantas outras histórias e sequelas como “A História do Esquilo Nutkin” foram publicadas: no total, escreveu e ilustrou cerca de 30 livros. Quando Potter começou pelo simples “era uma vez”, talvez não soubesse exatamente onde as aventuras do coelho desobediente e malandro — que rouba comida da horta do Sr. Gregório — a levariam um pouco por todo o mundo. Se a rejeição inicial das editoras não a desmotivou, a aposta na literatura infantil britânica, mais tarde, foi o “empurrão” que precisava na carreira.

A escrita e a ilustração foram desenvolvidas na infância e adolescência, quando estava rodeada pelos animais de estimação e enquanto explorava cada detalhe das plantas na sua casa de campo. Se a literatura não resultasse como ganha-pão, a botânica e a medicina veterinária poderiam ser apostas para o futuro. Autodidata desde os primeiros passos, Beatrix Potter nunca teve aulas fora de casa: foi educada por governantas e os conhecimentos (mais formais) eram adquiridos pelas aulas com percetores. Mas a ilustração e a escrita não. Eram áreas em que a teoria era a Natureza e o próprio talento e motivação de Potter — com o irmão fez postais de Natal, onde o design era original e tinha ratos e coelhos como protagonistas.

[A adaptação do clássico de Beatrix Potter na BBC]

A 28 de julho de 1886 nascia Helen Beatrix Potter em Kensington, Londres. Passados 150 anos, a obra e o legado da escritora não são esquecidos. Em York está sediada a Beatrix Potter Society, uma organização sem fins lucrativos que se dedica à curadoria e ao estudo do trabalho de Potter. Rowena Godfrey, presidente da instituição, afirma ao Observador que a literatura infantil não é o único foco:

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Não queremos homenageá-la apenas como a autora de ‘A História do Pedrito Coelho’, mas também como uma pintora, diarista, agricultora e conservadora”.

As várias vertentes de Potter culminaram nos temas dos livros e das ilustrações. No entanto, não foi apenas nos conteúdos que se manifestaram os seus gostos. A vida do campo e a Natureza determinaram também alguns esforços financeiros por parte da autora, como a compra de uma quinta, a Hill Top Farm, que ainda hoje é conhecida como a “casa de Beatrix Potter”. Atualmente, está sob chancela da organização National Trust, dedicada à conservação e preservação de espaços de interesse histórico e natural, e que segue ao pormenor as indicações deixadas em testamento.

O legado da escritora é um dos principais objetivos da Beatrix Potter Society e para isso há que apresentá-la tanto aos mais novos como aos graúdos, através de dois projetos — “Ler Beatrix Potter” e “Uma Introdução a Beatrix Potter”. A ideia é muito próxima daquela que orienta qualquer clube de leitura: a obra da inglesa é esmiuçada, discutida e apreciada. “Os membros da associação falam com as crianças e leem Beatrix em escolas, bibliotecas, livrarias; já com os adultos, o trabalho de Beatrix nas mais variadas áreas é debatido, além de nos focarmos também na criatividade enquanto autora”, explica-nos Rowena Godfrey.

A influência não se fica pelo Reino Unido e a verdade é que alguns membros da Beatrix Potter Society vivem fora do país. “Temos muitos contactos nos Estados Unidos e no Japão. Qualquer que seja a exibição no estrangeiro, são sempre bem recebidas e visitadas por milhares de pessoas”, diz. Após o sucesso da história do Pedrito Coelho, a autora tentou rentabilizar ao máximo a obra, com a criação de vários tipos de merchandising. Um dos focos de negócio foi a aposta no mercado norte-americano.

Ana Maria Magalhães, escritora portuguesa de literatura infantojuvenil e conhecida por ter escrito a coleção “Uma Aventura” com Isabel Alçada, acredita que os escritores anglo-saxónicos conseguem ter maior impacto junto do público — “O simples facto de escreverem em inglês, uma das línguas mais faladas, facilita o crescimento do número de leitores”. No entanto, o talento e a perseverança de Potter não são descurados:

Há sempre a história emblemática do Pedrito Coelho, com uma literatura muita ternurenta e doce”, afirma.

O “bate-pé” que a autora fez perante as editoras, de não modificar as ilustrações, ou face aos próprios pais, relativamente ao futuro como escritora e ilustradora, estão entre as virtudes que Ana Maria Magalhães destaca em Potter. “Teve uma importância pioneira na literatura infantil mundial e com uma vocação forte, soube permanecer-se firme nas adversidades”, refere. Talvez Beatrix não gostasse dos desenhos e cores mais agressivas que impingem hoje às suas ilustrações, mas “publicar e ler os clássicos é sempre uma mais-valia para quem quer começar na área”.

Carla Sá, uma das autoras da nova geração de literatura infantil portuguesa, não esquece “as imagens dos coelhos travessos, os ratos ardilosos, os felinos disfarçados, os pássaros que guiavam os coelhos até à segurança do bosque e o dono da horta, um rezingão que afugentava os coelhos aos gritos”. A escritora da coleção “Detetive Psíquico” acredita que Potter “conseguiu inscrever o seu nome na literatura”, pelo que a publicação dos Contos Completos “merece atenção” de novos autores e novos leitores.

Beatrix Potter 1

A edição comemorativa dos 150 anos de Beatrix Potter, com o carimbo Pim!

Já o arquiteto João Pancada Correia, professor na Universidade Autónoma de Lisboa, é um dos portugueses que tem estudado a obra de Beatrix Potter. Viajou até Inglaterra, visitou os locais que inspiraram os textos e desenhos e leu as edições originais.

O universo artístico de Potter só superficialmente pode ser confundido com outras fábulas conhecidas. Não existe tanta sátira, crítica ou caricatura: a interação entre os humanos, a Natureza e os animais é mais harmoniosa e tranquila”, diz.

“Uma mulher à frente do seu tempo” pode ser um conceito que facilmente se adequava a Beatrix Potter: “Criou sozinha a sua própria carreira quando os pais esperavam que ficasse em casa, mas não era uma feminista”, esclarece a presidente da Beatrix Potter Society. Rowena Godfrey relembra uma frase que a escritora escreveu à época — “Sou uma conservadora nata e acredito que um casamento feliz é a coroa da vida de uma mulher” — Potter casou-se aos 47 anos com William Heelis. Após a morte do marido, não é conhecido mais nenhum relacionamento amoroso.

Os Contos Completos vão ser publicados pela primeira vez em Portugal, esta quinta-feira, numa parceria conjunta — Pim! — entre as editoras Ponto de Fuga e Europress.