Depois de mais de três décadas de vida pública, Hillary Clinton fez o discurso mais importante da sua vida ao aceitar a nomeação do Partido Democrata para ser candidata à presidência dos EUA, tornando-se na primeira mulher a ascender a essa posição dentro de um dos principais partidos do país.

Numa intervenção que por si só representou um momento histórico nos EUA, Hillary Clinton recorreu à História daquela nação fundada há apenas 240 anos para defender que Donald Trump não é apto para ser o 45º homem a entrar para a Casa Branca — e que ela deve ser a primeira mulher a fazê-lo, alicerçada num ideal de união nacional.

“Os nossos fundadores receberam de braços abertos a verdade inabalável de que nós somos mais forte juntos”, disse, referindo-se a um dos slogans da sua campanha, Stronger Together. “Agora, a América está outra vez num momento decisivo. Forças poderosas ameaçam-nos com a divisão. Os laços de confiança estão a fraquejar. E tal como aconteceu com os nossos fundadores, não há garantias”, referiu. “Temos de decidir se vamos todos trabalhar juntos para que nos possamos todos erguer juntos.”

“Nós dizemos que ‘nós, juntos, vamos melhorar tudo'”

À imagem daquilo que foi uma grande parte dos últimos quatro dias em que os democratas estiveram reunidos na cidade de Philadelphia, Hillary Clinton serviu-se das gaffes e polémicas do seu adversário e candidato republicano, Donald Trump, tanto para criticá-lo como para enumerar vários pontos do seu programa.

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No discurso de encerramento da convenção republicana, a 21 de julho, Donald Trump garantiu: “Ninguém conhece o sistema melhor do que eu, por isso é que, sozinho, vou melhorá-lo”. Hillary Clinton foi buscar a esta promessa do seu adversário uma das ideias centrais da sua intervenção de quinta-feira.

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Hillary Clinton recorreu ao longo historial de gaffes de Donald Trump na maior parte das vezes que o criticou (JUSTIN LANE/EPA)

“Não acreditem em ninguém que diga que ‘eu, sozinho, vou melhorar tudo'”, disse, recordando à plateia que essas foram as palavras de Donald Trump. “A sério?… ‘Eu, sozinho, vou melhorar tudo’?”, repetiu, com visível ironia. “Não estará ele esquecido das tropas na linha da frente, dos polícias e dos bombeiros que correm em direção ao perigo, dos médicos e enfermeiros que tratam de nós, dos professores que mudam vidas, dos empreendedores que veem possibilidades em todos os problemas, das mães que perderam crianças para a violência e que estão a construir um movimento para manter outras crianças seguras?”, enumerou. “Ele está a esquecer-se de cada um de nós. Os americanos não dizem ‘eu, sozinho, vou melhorar tudo’. Nós dizemos que ‘nós, juntos, vamos melhorar tudo’.”

Além de apontar ao seu adversário de usar uma retórica fraturante, Hillary Clinton acusou Donald Trump de estar à espera de que os “perigos do mundo nos deixem cegos perante o seu potencial ilimitado” e de incitar o medo:

“Ele levou o Partido Republicano para um lugar longínquo, da manhã na América à noite na América. Ele quer que tenhamos medo do futuro e medo uns dos outros. Mas vocês sabem que um grande Presidente democrata, Franklin Roosevelt, fez a maior rejeição de Trump há 80 anos, durante tempos muito piores, quando disse que ‘a única coisa que devemos ter medo é do medo em si’.”

No campo da política externa dos EUA, que ela própria liderou quando foi Secretária de Estado entre 2009 e 2013, Hillary Clinton disse estar “orgulhosa” do acordo nuclear com o Irão e do tratado para o clima de Paris; defendeu que os EUA continuassem a “apoiar a segurança de Israel” e também todos os “aliados na nato contra qualquer ameaça que eles enfrentem, incluindo da Rússia”. Sobre o combate ao Estado Islâmico, admitiu que este “não vai ser fácil” mas deixou uma garantia: “Vamos prevalecer”.

E logo voltou a Donald Trump, recordando a ocasião em que ele disse saber “mais sobre o Estado Islâmico do que os generais”. “Não, Donald… Não sabes”, atirou-lhe Hillary Clinton, que o caracterizou como um homem pouco sereno, levantando os riscos que isso pode representar caso venha a ser Presidente:

Ele perde a calma à mais pequena provocação. Quando um jornalista lhe faz uma pergunta difícil, quando é desafiado num debate, quando vê um manifestante num comício… Imaginem, se se atrevem, imaginem, imaginem-no na Sala Oval a gerir uma crise a sério. Um homem que podemos provocar com um tweet, não é um homem a quem podemos confiar armas nucleares.”

Discursando uma semana depois do seu adversário o ter feito em Cleveland, no Ohio, Hillary Clinton parecia estar a criar um debate em diferido. Mesmo quando fez uma lista algo exaustiva de medidas que planeia adotar se chegar à Casa Branca, a candidata dos democratas terminou dizendo: “Vocês não ouviram nada disto na semana passada da boca do Donald Trump, pois não?”. “Não admira que ele não goste de falar dos seus planos”, disse. “Se calhar, já repararam que eu adoro falar dos meus.”

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Entre os planos de Hillary Clinton, é possível reconhecer um número considerável de medidas que eram até há pouco exclusivas de Bernie Sanders, o senador do Vermont, que aos 74 anos, e partindo de uma posição de quase anonimato perante o eleitorado em geral, conseguiu criar um movimento dentro do Partido Democrata composto sobretudo por jovens que vão votar pela primeira vez a 8 de novembro.

Entre as medidas que Hillary Clinton pediu emprestadas a Bernie Sanders está “o maior investimento em empregos com bons salários desde a Segunda Guerra Mundial”, um estímulo a que Bernie Sanders fez referência como uma versão contemporânea do New Deal com o qual Roosevelt fez frente à Grande Depressão de 1929.

Também se falou do aumento do salário mínimo federal de $7,25 para $15, uma promessa de Bernie Sanders, foi agora referida por Hillary Clinton, que outrora não se comprometia com uma subida desta proporção.

A candidata democrata chegou também a apelar ao voto de todos aqueles que “acreditam que devemos dizer não a tratados comerciais injustos”, numa alusão ao TTIP, do qual Hillary Clinton se foi afastando na reta final das primárias, aproximando-se assim de Bernie Sanders.

Além disso, falou a favor de um aumento de impostos a “Wall Street, às grandes empresas e aos super-ricos”, usando uma frase que certamente encheu o senador de do Vermont de orgulho: “Nós não temos nenhum tipo de ressentimento com o sucesso, mas quando mais de 90% dos ganhos estão a ir para os 1% de cima, então é para aí que o dinheiro está a ir, e nós vamos seguir o dinheiro”.

É notório o esforço de Hillary Clinton em trazer até si o eleitorado de Bernie Sanders, uma das primeiras pessoas que saudou no seu discurso. “Tu puseste os temas das desigualdades económicas e sociais na fila da frente, onde elas pertencem”, disse, para depois fazer um apelo direto aos jovens que apoiaram o senador socialista: “Quero que saibam isto: eu ouvi-vos. A vossa causa é a nossa causa. O nosso país precisa das vossas ideias e paixão. É a única maneira de convertermos o nosso programa progressivo em mudanças verdadeiras para a América”.

A candidata dos democratas à Casa Branca enunciou ainda um rol de medidas mais consensuais de uma ponta à outra do Partido Democrata, como o controlo das armas (“eu não estou aqui para vos tirar as armas, eu só não quero que sejam mortos por alguém nunca devia ter acesso a uma”); a luta contra o aquecimento global (“eu acredito na ciência! Eu acredito que o aquecimento global é real e que podemos salvar o nosso planeta ao mesmo tempo que criamos empregos”); e um alteração das políticas de imigração que “vai expandir a nossa economia e manter as famílias juntas e que é a coisa certa a fazer”.

Dar a mão à palmatória do eleitorado “desiludido furioso”

Mas não é apenas o eleitorado do senador do Vermont que Hillary Clinton terá de conquistar para conseguir fazer História novamente e atravessar a porta da Casa Branca como a primeira mulher Presidente após o primeiro afro-americano a desempenhar aquele cargo. Também terá de cativar o eleitorado que as sondagens dão como mais inclinado para Trump: rural, muitas vezes masculino, sem formação académica e, acima disso tudo, descontente.

A esse setor, Hillary fez uma concessão: “Alguns de vocês estão frustrados, até furiosos. E sabem que mais? Têm razão”. Embora momentos antes tivesse dito que achava que Barack Obama e Joe Biden “não têm recebido os créditos que merecem por nos terem tirado da pior crise económica das nossas vidas”, a ex-Secretária de Estado reconheceu que “as coisas ainda não estão a funcionar como deviam”, obrigado o seu partido a dar a mão à palmatória:

“Os americanos estão dispostos a trabalhar e a trabalhar no duro. Mas neste momento um número considerável de pessoas sente que há cada vez menos respeito pelo trabalho que eles fazem e menos respeito por eles, ponto final. Democratas, nós somos o partido dos trabalhadores. Mas nós não temos feito um trabalho bom o suficiente para mostrar que nós sabemos o que é que vocês estão a passar e que vamos fazer algo para vos ajudar.”

Mas, mesmo reconhecendo as zonas em que os democratas ainda têm trabalho por fazer, Hillary Clinton quis deixar claro que, na sua interpretação do atual estado do país, o atual Partido Republicano de Donald Trump está longe de ser a solução para os problemas dos EUA e de uma classe média de classe trabalhadora desiludida com os seus líderes.

Uma das passagens que mereceram uma da ovações mais entusiasmadas da noite foi quando HIllary Clinton questionou Donald Trump quando este “diz sempre que quer meter a ‘América em primeiro lugar'”. “Por favor expliquem que parte da América é que ele quer meter em primeiro lugar quando as gravatas Trump são feitas na China e não no Colorado, os fatos Trump no México e não no Michigan, a mobília Trump na Turquia e não no Ohio, as molduras Trump na Índia e não no Wisconsin…”, enumero. “Donald Trump diz que quer fazer a América grandiosa de novo. Bom, ele podia começar por fazer as coisas na América, outra vez.”

“Há tantas pessoas que não sabem o que fazer de mim”

Se as gaffes de Donald Trump foram o verdadeiro combustível do convenção de um Partido Democrata demasiado assustado com a possibilidade de a sua desunião interna poder ser o trampolim do candidato republicano, também ficou claro que um dos objetivos destes quatro dias que agora terminaram era o de sublinhar o percurso de serviço público de Hillary Clinton e o seu extenso currículo — como se se tratasse de uma entrevista de emprego.

Hillary Clinton não quis passar a ideia de que é uma cidadã comum — algo que em nada combinaria com o seu estatuto de figura pública e política de incontornável influência e elevado escrutínio. Ainda assim, a ex-Secretária de Estado demarcar-se do seu adversário e da sua história pessoal, de herdeiro de um pai que fez fortuna no ramo do imobiliário e da construção.

“A família de onde eu venho, da qual ninguém tinha os seus nomes em grandes edifícios, eram construtores de outro tipo”, disse numa alusão a Donald Trump. “Eram construtores como muitos americanos são. Usaram as ferramentas que tinha, as que foram dadas por Deus ou aquelas que a vida na América lhes concedeu, e construíram vidas melhores e futuros melhores para os seus filhos”, disse, numa tentativa de se identificar com o eleitorado comum, mais que não seja pelo seu passado familiar.

A construção da imagem de uma obstinada mulher de causas, que foi alimentada em inúmeros discursos nos quatro dias da convenção — culminando no de Chelsea Clinton, onde garantiu que a sua mãe “nunca se esquece daqueles por quem luta” e que os ideais que defende “agarram o seu coração e a sua consciência para nunca mais a largarem” — dificilmente terá servido como antídoto às reticências com que a candidata dos democratas é recebido na opinião pública.

Ela própria fez menção dessa perceção. “A verdade é que ao longo destes anos todos de serviço público, a parte do ‘serviço’ sempre tem sido mais fácil para mim do que a parte do ‘público’”, admitiu, referindo ter consciência de “que há tantas pessoas que não sabem o que fazer de mim”.

Serão precisamente essas pessoas, “tantas”, que vão definir quem será Hillary Clinton: a primeira mulher a ser nomeada por uma grande partido para ser Presidente ou, mais do que isso, a primeira mulher a chegar ao cargo mais alto do mundo. Até 8 de novembro, têm 102 dias para decidir o que fazer de Hillary Clinton.