Comecemos por uma história: certo dia, o radialista John Peel, na solidão do estúdio, contou aos ouvintes que estava com fome. Um rapaz chamado Billy Bragg chegou-se à frente, saiu de casa e entregou-lhe um arroz biryani com cogumelos. Na sequência disso Peel terá passado um tema de Life’s a Riot With Spy Vs.Spy, primeiro disco do primeiro projecto oficial de Billy, editado em 1983, que se seguiu a uma passagem por território militar e pelo estacionamento temporário num grupo punk chamado Riff Raff.

Pormenor: a canção foi passada na rotação errada, equívoco depois corrigido. Mais tarde, aquele que foi autor de um dos grandes programas radiofónicos de culto dirá que passou a canção porque acreditava nela e não por causa do arrozinho. Acreditamos. O insuspeito Mark E. Smith, dos Fall, a banda favorita de Peel, já garantiu em entrevista que ele que só colocava no gira-discos aquilo de que gostava mesmo.

Começar a carreira a entregar arroz a alguém condiz na perfeição com o percurso de um homem que tem passado a sua vida de cantautor como defensor do proletariado, que experimentou versões muitas de hinos esquerdistas e integrante, nos anos 80, de movimentos e concertos de protesto ao lado de bandas como os Style Council e os Communards. Uma parte generosa do percurso de Stephen William “Billy” Bragg, nascido em Inglaterra, Barking, Essex, no ano de 1957, tem sido a de activista, sempre pronto a tornar públicas as suas posições.

Digamos que, além da guitarra, ele guarda duas causas arrumadas na mala: a política e o amor (a ordem não é decisiva). Há quem se aproxime da sua música pelo perfume amoroso e há quem prefira a sua defesa militante dos direitos do operários – a dado momento com especial incidência nos mineiros — e um insistente combate quando Thatcher chegou ao poder.

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O referido Life’s a Riot With Spy Vs. Spy começa com um tema que revela a sua vocação solidária e empática. O seu coração amável. Em “The Milkman of Human Kindness” distinguem-se versos de uma generosidade que merece ser recuperada nesta era dominada por licenciados em cinismo: “If you are falling, I’ll put out my hands/ If you feel bitter,/I will understand/ I love you/ I am the milkman of human kindness/ I will leave an extra pint”. Ou seja: além de um apetitoso arroz, Bill traz uma cerveja também. O que é que se pode querer mais?

A caminhada deste poeta pode situar-se numa linha muito influenciada pelo cantor interventivo americano Woody Guthrie, criador do mais do que famoso manifesto musical “This Land Is Your Land”. Mas o que o distingue é a circunstância de essa marca se fundir com o punk rock bebido nuns Clash (nunca mais esqueceu um concerto que viu deles na segunda metade dos anos 70) e numa raiz de folk inglesa. Aliás, é conhecido o seu patriotismo left wing, o que lhe trouxe uma simpatia extra entre a população trabalhista.

Muitas das suas músicas, a certa altura a atingirem lugar apetecíveis nos tops ingleses, são um petisco para cantorias comunitárias. “A New England”, por exemplo, hino a um romantismo despretencioso – adjectivo que define bem o que ele é — e primaveril: “I don’t want to change the world/ I’m not looking for a new England/ I’m just looking for another girl”. Ou a radical “Ideology”, que, certamente por lapso, não está incluída na lista do iPod de alguns gestores da coisa pública (“Our politicians all become careerists/They must declare their interests”). Ou a sua versão de “There is Power in The Union”, canção de um álbum que tem um título magnífico, respigado num poema de Mayakovsky: Talking With The Taxman About Poetry.

O Mr. Love and Justice, como se definiu no título de um álbum, embora seja mais forte quando se apresenta apenas com a guitarra, também passou pela pop no dançável “Sexuality”, desenhado com instrumentação variada e que, nas pistas, é uma escolha perfeita para vir a seguir a “Friday I’m In Love”, dos Cure. Não foi com a banda de Robert Smith que viria a colaborar mas sim com outro grupo, hoje, de veteranos: os Wilco. É a adesão de Bragg ao, chamemos-lhe assim, alternative country. A parceria começou em 1998 com Mermaid Avenue, álbum feito de canções maiores como “Way Over Yonder in The Minor Key”, “The Unwelcome Gest” e a lindíssima “California Stars”, também um original de um homem que exibia na guitarra o slogan “This Machine Kills Fascists”: o mencionado Woody Guthrie. Depois veio o segundo e o terceiro volumes com mais versões memoráveis nas quais o registo folk de Guthrie é inteiramente respeitado.

Quem pouco conhece Bragg, figura mais destacada em chão britânico, pode começar por ouvir o disco Must I Paint You a Picture, baú onde se encontram hits vários e importantes lados B. Existem três canções obrigatórias nesse dicionário: “The Saturday Boy”, “The Price I Pay” e o tema-título. “Most important decisions in life are made between two people in bed”, canta a certa altura sobre um tapete feito da dança essencial da sua guitarra, de pianos, órgãos e uma voz feminina que sublinha uma mensagem: “love is strong/love is real”. Sim, merece fazer parte de qualquer playlist das melhores trovas de amor.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.