Morreu Mário Moniz Pereira, o treinador do Sporting que ficou conhecido como o “Senhor Atletismo”. O anúncio da morte foi feito nas redes sociais pelo Sporting. Moniz Pereira estava internado no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, onde morreu com uma pneumonia.

O antigo atleta e treinador de atletismo era o sócio número 2 do Sporting, clube ao qual dedicou grande parte do seu esforço pela promoção e desenvolvimento daquela modalidade. Foi treinador de atletas como Carlos Lopes, Fernando Mamede e os gémeos Castro e, mais recentemente, de Francis Obikwelu ou Naide Gomes.

Bruno de Carvalho, presidente do Sporting, classificou-o como “um homem que fabricou campeões que ganharam tudo o que havia para ganhar”. Em comunicado, o Presidente da República disse que morreu “um homem bom”. “Deixa uma vida repleta de bons exemplos, de devoção ao Desporto e aos desportistas, tendo ele próprio sido uma glória do atletismo nacional”, lia-se na mesma nota.

Ao todo, esteve presente em 12 Jogos Olímpicos. Começou e acabou em Londres, entre os Jogos Olímpicos de 1948 e 2012. Da primeira ocasião, recordou ao Correio da Manhã que “a guerra tinha acabado há pouco tempo e Londres ainda estava muito destroçada”. Na memória também ficou um erro que cometeu naquela edição dos Jogos Olímpicos: “Quando pedi uma fita para medirmos a corrida dos atletas antes dos saltos não me apercebi de que aquilo era em polegadas em vez de centímetros”. Como resultado, os atletas “começaram a trocar os pés na corrida de balanço”. “Foi uma chatice, porque podíamos fazer uma boa figura.”

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Essa boa figura chegou alguns anos mais tarde, naquele que foi o momento mais alto da sua carreira enquanto treinador: a vitória de Carlos Lopes na maratona dos Jogos Olímpicos de 1984, em Los Angeles. Nessa altura, já levava quase quatro décadas como treinador de atletismo. “Demorou 39 anos [a acontecer] o que toda a gente dizia ser impossível”, disse daquele momento, numa entrevista em 2013 ao Correio da Manhã. “Chorei que nem uma Madalena no dia em que aconteceu. Toda a gente dizia que era impossível e eu derrotei os impossíveis.”

Além do atletismo, onde era profissional, era-lhe reconhecido mérito como compositor de fado e letrista, que exercia com fulgor de um amador empenhado. Foi o autor mais de 120 sucessos, entre fados e canções, que compunha no piano, que foi uma herança de família. Nos estágios, tocava piano relaxar os seus atletas.

O sonho (cumprido) de dar uma medalha de ouro a Portugal

Ao longo da sua carreira de treinador, foi especialmente persistente na sua demanda de elevar o nível do atletismo português. “Tinha gosto em que Portugal tivesse atletas de categoria internacional e toda a gente dizia que era maluco”, lembrou, na mesma entrevista de 2013. “E eu respondia: ‘Julgam que somos diferentes, mas não somos. Deem-nos possibilidades de demonstrar'”, costumava dizer. Até àquele fatídico 12 de agosto de 1984 em que Carlos Lopes subiu ao pódio em Los Angeles, teve sempre o mesmo sonho: “Que um dia um atleta treinado por mim vá aos Jogos Olímpicos ganhar a medalha de ouro e que eu ouça o hino português ouvido em toda a parte do Mundo”.

Fernando Mamede, corredor de fundo do Sporting, recordou à RTP que “ele apostou em meia dúzia de atletas de alta competição e fez um programa do qual algumas pessoas se riram e disseram que ele não ia ter êxito, que não era possível esta meia dúzia de atletas ter ascensão internacional”. “Ele mostrou A mais por B que nós, treinando um pouco, mesmo sem tendo as condições dos atletas estrangeiros, éramos capazes.”

Treinador de várias gerações de atletas portugueses, Moniz Pereira ficou conhecido entre eles pela disciplina. Uma coisa era certa e sabida para os seus atletas: o treino era às 9h00. Até quando Carlos Lopes foi campeão de crosse em Nova Iorque em março de 1984, a poucos meses de vencer a maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, a regra manteve-se inalterada. “Professor, não diga que hoje não há festa!”, atiraram-lhe os atletas. A resposta devolvida fez jus à sua reputação: “Claro que há festa! Podemos beber champanhe, só que o avião para Lisboa parte às quatro da tarde e amanhã há treino às 9h00”.

Moniz Pereira era proveniente de uma família abastada de Lisboa. Ainda chegou a concorrer à Escola do Exército, juntamente com o irmão Nuno, um ano mais novo. As provas físicas correram bem ao dois, mas no exame de Álgebra Superior e a Geometria Descritiva teve nota negativa, ao contrário do irmão. “Foi o melhor chumbo da minha vida”, disse. “Se tivesse entrado talvez já estivesse morto, porque teria ido para a guerra.” Em família, a sua opção por desporto nem sempre era bem vista. “O Nuno é oficial do Exército e o Mário anda a estudar para palhaço!”, dizia o avô de ambos. “Não fiquei muito ofendido, porque também gosto de palhaços.”

A crítica da “ditadura futebolística”

Já nos seus últimos anos de vida, era com regularidade que demonstrava desagrado com o estado do atletismo português. Muitas vezes dizia que Portugal vive uma “ditadura futebolística”. Não é que não gostasse de futebol, tanto que foi preparador físico da equipa principal de futebol do Sporting que veio a ser campeã nacional em 1970/71. O problema era antes a falta de espaço que sobra para os outros desportos.

Essas críticas estendiam-se ao seu clube, o Sporting. “A primeira coisa que me tramou foi quando o Sporting fez um estádio sem pista de atletismo”, disse ao Correio da Manhã, referindo-se ao estádio inaugurado em 2003, na altura batizado como Alvalade XXI. “O clube era conhecido em toda a parte do Mundo porque os seus atletas bateram recordes nacionais, da Europa, do Mundo, e até olímpicos em toda a parte. Não por causa dos jogadores de futebol.” Ao Público, numa entrevista em 2012, em vésperas dos Jogos Olímpicos de Londres, também tocou nesse assunto. “Temos de andar a treinar em vários sítios, nem pavilhão há…”, lamentou. “Além de que [o clube] tem um orçamento maior para o futsal do que para o atletismo. Onde já se viu, jogar futebol fechado numa casa!”

Quando lhe perguntaram como gostaria de ser recordado no futuro, respondeu: “Isso já não me interessa nada. Tive uma vida muito bonita, porque fiz sempre aquilo de que gosto, e fi-lo bem”.

Ou então, como diz o fado que ele próprio compôs, “valeu a pena”.