Sabemos que os séculos nem sempre guardam bem os seus arquitetos, nem os de paredes nem os de histórias. Mas quis o acaso que o convento sem teto, aberto para o céu noturno de Lisboa, e a genialidade do verso Shakespeariano se encontrassem ainda no século XXI. Este pequeno milagre já seria suficiente para justificar ir ver “Cimbelino”, a peça do dramaturgo inglês que se estreia esta quarta-feira, dia 3, no chão das ruínas do Carmo e onde só fica durante 10 dias. A exibição está integrada no Festival Glorioso Verão que assinala 400 anos sobre a morte de William Shakespeare.

Mas há mais: é que “Cimbelino”, umas das peças finais de Shakespeare, é uma comédia auto-irónica, um olhar do mestre de Stratford-upon-Avon sobre o seu próprio trabalho, ao qual o encenador António Pires, sempre animado pelo riso, não hesitou em juntar as suas próprias provocações criando um espetáculo barroco, cheio de referências às artes plásticas e à musica, que fazem da peça um eixo de ligações inusitadas — porque, como diz “a arte é aquilo que faz desocultar as memórias de cada um”. Portanto, se vir por lá as meninas de Velasquez não se admire. Foram mesmo elas que saíram do quadro do pintor espanhol ou então tudo não passa de um sonho numa noite de verão.

Vamos à história

Cimbelino, rei da Britânia, ainda em tempos de império romano, é um tonto demasiado pequeno para o tamanho do trono que ocupa. Qualquer semelhança com os políticos da atualidade será mera coincidência. Até porque António Pires, encenador residente do Teatro do Bairro, homem que não se cansa de mostrar que o teatro é uma coisa séria. Adriano Luz dá corpo a este rei volúvel, que deixou que lhe levassem os filhos, não impediu que a filha casasse com um pobre pondo em casa a linhagem e casou com uma mulher pérfida (Rita Loureiro), que o manipula mas que, pelo menos, é capaz de tomar decisões.

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Rita Loureiro e Adriano Luz ou a aliança tragicomica entre uma mulher pérfida e um homem tonto

Rita Loureiro e Adriano Luz ou a aliança tragicómica entre uma mulher pérfida e um homem tonto

No centro da história estão os amores contrariados de Imogénia e Postumo e toda uma galeria de personagens pronta a fazer tudo para que este amor não se consume. Mentiras, cartas, poções mágicas, identidades trocadas. Há de tudo e é como se Shakespeare revisitasse a sua própria obra para dela troçar. Daí que durante muito tempo houve quem duvidasse da autoria de “Cimbelino”, como se rir de si mesmo não fosse (também) uma prerrogativa dos génios.

O ritmo do verso e a da ação são vertiginosos, num corte e cola que hoje se diriam próprios do cinema, mas que, pelo vistos, já se faziam (calcula-se que esta peça date de 1611). Apesar da modernidade, a narrativa está cheia de elementos fantásticos, coincidências obscuras, heróis e heroínas improváveis como é próprio da época. Aproveitando este pot-pourri, e sempre pronto a deitar achas para a fogueira da ironia, António Pires foi buscar ainda elementos das tragédias gregas, evocações dos contos de fadas, música barroca, Velasquez, Klimt e Caravaggio.

Temos assim um coro de jovens vestais que são na verdade umas boas coscuvilheiras, maldosas e sarcásticas que ajudam a adensar o espírito de sátira da peça a que se junta o inenarrável enteado do rei, Cloten (Duarte Jardim), sempre mais preocupado com a elegância dos fatos que veste do que em cortejar a princesa como lhe ordena a mãe. E, claro, um par amoroso mais permeável à mentira, ao ciúme e às poções mágicas, do que ao amor. O que lhes valeu foi que desta vez Shakespeare, talvez farto das suas próprias tragédias, quis que tudo acabasse em bem.

Do elenco também fazem parte nomes como Ricardo Aibéo, Carolina Crespo, João Barbosa e José Pimentão. Um total de 26 artistas, entre profissionais e finalistas da escola de atores ACT.

Texto de Shakespeare adaptado por Luísa Costa Gomes; projeção em inglês numa das paredes do convento. A peça dura cerca de duas horas e fica em cena até dia 13 de agosto. Todos os dias às 21h. Bilhetes a 15€.