Assim que atravessou a meta dos 400 metros, Wayde van Niekerk deitou o joelho direito no chão e debruçou-se sobre a perna esquerda. A pista número oito, considerada a mais difícil da pista de atletismo, havia ficado para trás. Estava a rezar. Depois levantou-se, olhou para o céu e enviou um beijo a Deus. Um beijo e um tweet, momentos depois da corrida: “Deus é o poder”. Mas se há deuses na Terra, van Niekerk tinha acabado de se tornar num: tinha batido o recorde do mundo correndo 400 metros em 43,03 segundos. E estava pronto para entrar a história dos Jogos Olímpicos: este atleta sul-africano é o primeiro atleta a correr os 100 metros em menos de 10 segundos (9,98), a fazer os 200 metros em menos 20 segundos (19,94) e o segundo a terminar os 400 metros abaixo dos 44 segundos (43,03).

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Segundo? Nos bastidores dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro estava Michael Johnson. “Massacrou o meu recorde, meu Deus! Nunca tinha visto ninguém fazer aquilo entre os 200 e os 400 metros, ainda para mais pelo corredor oito!”. Em 1999, o atleta norte-americano tinha feito milagres em Sevilha durante o Campeonato Mundial de Atletismo, quando completou a corrida dos 400 metros em 43,18 segundos. A 14 de agosto último, dezassete anos e doze dias depois, van Niekerk desafiou os relógios e fez a mesma distância em menos 15 centésimos de segundo. “Se ainda estivesse a competir e fosse vencido por outro, estaria furioso e faria tudo para recuperar o meu recorde. Ficaria obcecado diariamente e em cada treino”, admitiu Johnson. Agora é diferente: acredita que van Niekerk pode vir a ser a próxima estrela do desporto.

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Se Wayde van Niekerk é uma estrela, só pode ser das cadentes. É rápido e não para de surpreender. Mas não foi com a velocidade que fez história: foi passo a passo. Literalmente com os passos, porque é neles que está o segredo desta promessa do atletismo. Pegue na máquina calculadora e ponha a memória a funcionar: em 1999, Michael Johnson completou os últimos 100 metros da corrida ao fim de 46,8 passos. Este ano, van Niekerk só precisou de 42 passos no mesmo troço do percurso. Se considera esta diferença enorme, o próximo número fá-lo-á perceber que é verdadeiramente abismal. É que, enquanto um passo de Michael Johnson nos últimos 100 metros da corrida mede 214 centímetros, o passo de Van Niekerk no mesmo troço mede 238 centímetros, ou seja, é vinte centímetros maior que o anterior detentor do recorde mundial.

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Na corrida em que Van Niekerk bateu o recorde do mundo, o segundo lugar só conseguiu atravessar a meta ao fim de 7,3 centésimos de segundo depois do campeão olímpico. Era o granadino Kirani James, que há tempos havia sido apontado por Michael Johnson como o seu sucessor. Não foi e a física consegue explicar porquê: é mais alto que o atleta sul-africano e a sua média de passos não é tão impressionante como a de Van Niekerk: o granadino deu 42,9 passos nos últimos cem metros da corrida dos 400 metros, cada um deles com 233 centímetros de extensão – cinco centímetros mais curtos que os do atual recordista. Conclusão: a passada de Van Niekerk e o progresso que consegue através dela é o que o torna possível de feitos como o que alcançou nestes Jogos Olímpicos. Isso e a enorme resistência ao cansaço que parece ter: foi mais rápido entre as marcas dos 100 e dos 200 metros do que na fase inicial da corrida. Aliás, fez os segundos cem metros da prova em menos três décimas de Michael Johnson em Sevilha 1999.

A mãe que nunca chegou aos Olímpicos por causa do apartheid

Se a física ajudou, a família fez milagres: Wayde van Niekerk nasceu filho de uma velocista e de um saltador de altura, e começou a treinar desde muito cedo. A mãe, Odessa Swarts, foi uma das mais conceituadas atletas dos anos 80 e 90, chegando a deter o recorde do mundo dos 100 e dos 200 metros. Agora, Odessa viu o seu filho Wayde fazer aquilo que ela nunca conseguiu: participar (e triunfar) nos Jogos Olímpicos. É que a África do Sul foi banida de participar nos Jogos Olímpicos em 1964, em Tóquio, e a decisão só foi revertida em 1992, altura em que Odessa se retirava da competição.

Wayde van Niekerk e mãe

Wayde van Niekerk com a sua mãe, Odessa Swarts. (Imagem: Twitter/Odessa Swarts)

O país foi banido dos Jogos por se recusar a condenar o apartheid, optando por manter a discriminação racial na prática desportiva até à década de 90. Odessa, que era contra a opressão aplicada pelas leis do apartheid, escolheu juntar-se ao Conselho Sul-Africano para o Desporto (SACOS), que promovia o desporto sem discriminação racial. A sentença estava lida: nem a nível internacional, nem sequer a nível nacional podia praticar desporto. Odessa, uma atleta de topo mundial, acabou a competir apenas em torneios regionais, em pistas improvisadas e dentro de comunidades desfavorecidas. Ficou conhecida por praticar desporto em nome da liberdade.

“Este jovem acordou o mundo, não apenas a África do Sul”, disse após Wayde bater o recorde de Michael Johnson. E foi sempre assim. Apesar da sua história, Odessa prefere manter as atenções no filho: “O meu filho atingiu tudo sozinho”, tinha dito a um jornal sul-africano este ano. E dá uma justificação humilde para a sua história fora das grandes competições: “Nós nunca fomos expostos ao conceito de competição internacional. Estávamos sempre à procura de um lugar na associação de atletas amadores da África do Sul. Não me inquietava a possibilidade de chegar à equipa nacional”, reconhece. E elogia novamente o filho: “Não tínhamos modelos como Wayde van Niekerk para podermos pensar «Wow, ele é um tipo de cor, e nós podemos ser como ele»”. E não conseguiu esconder o orgulho no filho assim que o recorde foi batido:

A “avó” treinadora

Ana Sophia Botha é outro dos segredos de Wayde Van Niekerk. Trata-se da treinadora do atleta sul-africano, e tem… 75 anos. Os dois conheceram-se em 2013, num período de muita fragilidade física de Van Niekerk. Antes, já a senhora Botha o tinha observado, num campeonato mundial de juniores. O atleta tinha pouca massa muscular, e, por isso, muitas dificuldades na corrida, e foi mesmo uma senhora septuagenária que lhe trouxe a solução. Assim que teve oportunidade, Ana Sophia Botha tornou-se a treinadora de Van Niekerk, e passou os primeiros três meses a recuperar-lhe a forma física. Tinha de o reabilitar, e era fulcral escolher outra disciplina para ele. O atleta dedicava-se sobretudo aos 100 e aos 200 metros, mas a treinadora decidiu que os 400 metros eram a distância indicada.

Wayde van Niekerk e Ana Sophia Botha

Wayde van Niekerk e Ana Sophia Botha (Imagem: Twitter)

Numa mistura dolorosa entre a velocidade das corridas curtas e a resistência das longas, os 400 metros fizeram Van Niekerk querer desistir muitas vezes. Mas Botha era intransigente, e obrigava-o a treinar mais. As dores, que quase se tinham convertido em glória nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, quando Van Niekerk ficou a dois segundos da medalha de bronze, eram cada vez mais fortes. Havia de continuar a treinar, sob o comando da improvável mas firme treinadora, agora com 75 anos, até lhe trazer a alegria derradeira — bater o recorde de Michael Johnson na disciplina, que durava há 17 anos. Ana Sophia Botha tinha sido saltadora de comprimento nas décadas de 50 e 60, e desde então não largou o desporto. O segredo, diz ela, citada pelo Huffington Post, é rodear-se de jovens. “Sinto-me abençoada porque não tenho problemas de saúde, e isto deve-se ao facto de me rodear de gente jovem e ter de estar à sua altura”, explica Botha.