A relação entre “Ben-Hur”, o livro escrito em 1880 pelo general americano Lew Wallace, nas suas horas livres de estudar Direito e de governar o estado do Novo México, e o cinema, já vem de muito antes do monumental filme que William Wyler realizou em 1959 e ganhou 11 Óscares. Aliás, antes de ser adaptado ao cinema pela primeira vez, “Ben-Hur” fez sucesso no teatro, entre 1899, quando a sua versão de cena se estreou em Nova Iorque, com corrida de quadrigas e tudo, e 1921, ano da última representação nos EUA. Pelas descrições da imprensa da época, os meios técnicos empregues na produção eram dignos de um filme. E foram sendo melhorados à medida que o teatro se sentia ameaçado pelo cinema que chegava cada vez mais, em quantidade e qualidade, de Hollywood.

[Veja a história da génese do livro]

A primeira versão para cinema de “Ben-Hur” data de 1907, ainda a adaptação de palco estava a atrair milhares de espectadores e a dar lucros nos EUA e em capitais da Europa como Londres. Durava apenas 15 minutos e foi rodada à revelia da editora do livro e do filho de Wallace, detentores dos direitos. O caso foi para tribunal, com a vitória destes sobre a companhia produtora da fita. Só em 1925 “Ben-Hur” voltaria ao cinema, numa superprodução realizada por Fred Niblo, com Ramon Novarro e Francis X. Bushman nos papéis principais, filmada em Itália e em Hollywood. Foi o filme mais caro do cinema mudo, e a morte de vários “duplos” e extras durante a rodagem levou a uma revisão séria da segurança nos “sets”, e à alteração das respetivas leis.

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[Veja o “trailer” da versão muda]

Se o filme de Niblo foi feito numa altura em que o poder de Hollywood estava no auge, e o estatuto do cinema como a arte do século XX por excelência era inquestionável, o seu “remake” sonoro de 1959, assinado por Wyler e interpretado por Charlton Heston e Stephen Boyd, surge numa altura em que o cinema americano trava uma guerra desesperada com a televisão, e por isso investe na monumentalidade, nos temas épico-históricos e em inovações técnicas, do CinemaScope ao 3D. E este “Ben-Hur” foi uma batalha ganha, já que além dos 11 Óscares, o filme deu muito lucro e salvou os estúdios MGM da falência. Tal como o seu antecessor mudo, respeitava o livro de Lew Wallace num dos seus aspetos mais importantes, aliás exigido pelo autor como condição quando havia sido adaptado ao teatro em 1899: a figura de Jesus Cristo aparecia apenas fugazmente.

[Veja o “trailer” do filme de William Wyler]

Depois da versão de 1959, “Ben-Hur” foi ainda transformado numa longa-metragem de animação, em 2003, numa minissérie televisiva em 2010, num mega-espectáculo na O2 Arena em Londres, em 2009, e, imagine-se, numa série B de ação chamada “In the Name of Ben-Hur” (2016), onde Ben-Hur se junta a um grupo de jovens revoltosos para combater os romanos. E chegamos assim ao novo “Ben-Hur”, rodado na Cinecittà, tal como o de Wyler, pelo realizador cazaque radicado em Hollywood Timur Bekmambetov, com a MGM (agora associada à Paramount para dividir custos – e prejuízos, tendo em conta os resultados de bilheteira) sempre a tutelar a produção.

[Veja o “trailer” do novo “Ben-Hur”]

O filme surge numa altura em que Hollywood vive uma grave crise de criatividade, multiplicando-se em “franchises” de super-heróis, “remakes” e continuações, insistindo, numa escala nunca antes vista, no familiar e na repetição para sobreviver, e recorrendo ao 3D e ao IMAX para tentar cativar os espectadores; e em que o cinema transita para novas plataformas tecnológicas e ensaia novas formas de distribuição e exibição. E este inútil, desconchavado e ridículo “Ben-Hur” é apenas mais uma manifestação, mais um sintoma, dessa crise. Se o general Lew Wallace o visse, dava três mortais encarpados com duplo Nelson à direita na tumba.

[Veja a entrevista com o actor Jack Huston]

Não contente em parecer uma versão “Readers’s Digest”, atabalhoadamente condensada e mal amanhada dos dois filmes anteriores, e em ter diálogos de uma comicidade involuntária, “Ben-Hur” deturpa com o maior descaramento a história original (Messala agora é irmão adoptivo de Ben-Hur, o acidente que leva à desgraça da família Hur vira atentado de zelotas, a personagem de Quintus Arrius desaparece, e no final, digno de uma telenovela, Messala não morre, reconcilia-se com Ben-Hur e o resto da família e casa-se com a irmã dele), e falha com estrondo a tentativa de pôr de pé aqueles que são os dois grandes esteios da narrativa, fortíssimos nas versões de Fred Niblo e William Wyler: a espectacularidade épica e a religiosidade piedosa.

[Veja a entrevista com o ator Toby Kebbell]

Os momentos altos da história, a batalha naval e a corrida de quadrigas, são despachados por Timur Bekmambetov, qual trolha da câmara de filmar e calceteiro dos efeitos digitais, naquele estilo de confusão sobre-excitada e ensurdecedora que é própria dos filmes de super-heróis. E em vez de elidir a personagem de Cristo (interpretado por Rodrigo Santoro), o argumento dá-lhe um protagonismo insistente, para martelar a dimensão cristã e a “mensagem” de redenção e perdão (entre os produtores de “Ben-Hur” surge Roma Downey, ligada a produções bíblico-religiosas como as séries “Touched by an Angel”, “A Bíblia” ou “O Filho de Deus”), mas que acaba por ser forçado e postiço. Se a ideia era fazer proselitismo, os “Ben-Hur” de Niblo e Wyler são infinitamente mais inteligentes e eficientes no recato sugestivo naquilo que à matéria cristã diz respeito.

[Veja imagens da rodagem de “Ben-Hur”]

E há ainda o elenco. Uma superprodução assim pedia nomes com peso e carisma para os papéis principais, nem era necessário que fossem atores por aí além. Mas parece que quiseram poupar nos salários (estranhamente, apesar de uma fatura final de mais de 100 milhões de dólares, o filme tem ar de ter sido feito a contar os tostões), e tudo o que têm para mostrar neste capítulo, além de Morgan Freeman com um ridículo penteado à Bob Marley, é Jack Huston, neto do grande John, em Ben-Hur e Toby Kebbell como Messala, dois espessos panões que ajudam a afundar este funesto “remake” como se ele fosse uma das galeras da sequência da batalha naval. Tendo em conta as dimensões épicas da catástrofe, esta deve ser a última vez que “Ben-Hur” se manifesta no cinema. E de certeza tão cedo não fazem outro filme de sandália em Hollywood.