“Isto é o quê? Vai começar agora?”, pergunta, em inglês, um turista acompanhado por um grupo de amigas. Vão deixar-se ficar até ao fim. Ao parapeito da janela de casa, com vista privilegiada sobre o palco, uma mulher de meia-idade acompanha o que se passa e a meio do espetáculo faz comentários a preceito em momentos mais emotivos. “Pronto, toma que já estás morto.”

É a noite do ensaio geral da “Ópera de Faca na Liga”. Muitos turistas ficam a ver, rapazes do bairro passam com indiferença, um grupo de homens joga cartas no Café Parreirinha, mesmo ao lado, e técnicos e artistas dão retoques no espetáculo. A estreia acontece nesta sexta-feira, às 21h30, com repetição no sábado, à mesma hora.

“No ano passado tivemos 600 pessoas a assistir, este ano espero que seja um pouco mais”, confia a diretora artística, Catarina Molder.

Trata-se de uma apresentação, ao ar livre, de excertos de óperas clássicas. Pormenor: passa-se isto na Rua da Guia, na Mouraria, em Lisboa, bairro histórico onde nasceram a Severa, Fernando Maurício e outros grandes nomes do fado.

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“É um cenário muito especial, porque neste bairro, que tem muitos problemas, mas também pessoas cheias de vontade, há muita tragédia e muita comédia”, comenta Catarina Molder. “Acho que o espetáculo, a que demos um título quase de cabaret, leva a emoção aos extremos, há ciúme, traição, paixão intensa, por isso vai criar uma empatia muito forte com o público.”

Em agosto de 2015, na mesma rua, foi apresentada uma só ópera, “Os Palhaços”, de Ruggero Leoncavallo, depois levada ao bairro de Alfama. Desta vez, o espetáculo fica-se pela Mouraria e é composto por cenas de cinco obras:

“Tosca” (de Puccini, estreada em 1900),
“A Flauta Mágica” (Mozart, 1791),
“Carmen” (Bizet, 1875),
“Otello” (Verdi, 1887),
“Cavalleria Rusticana” (Mascagni, 1890).

Pelo que se observou no ensaio geral, quinta-feira à noite, a “Ópera de Faca na Liga” vive do humor com que os intérpretes adaptam as cenas, o que pode torná-las mais apelativas para um público pouco habituado. Eles reforçam as palavras com gestos exagerados, entram e saem do camarim (um rés-do-chão que pertence à Junta) ainda a cantar, trocam de roupa em cima do palco, cantam em português em alguns momentos, com letra adaptada e rimas que não falham.

O propósito, até por se tratar de uma apresentação fora de sala, não é tanto o da fidelidade aos originais ou ao género, antes o de popularizar o teatro lírico.

A diretora artística é também intérprete, como soprano, e surge acompanhada pelo tenor Carlos Guilherme e o barítono Jorge Martins. Ao piano, e na direção musical, está Joana David. O espetáculo tem entrada gratuita e dura cerca de uma hora.

“Não procuramos só entretenimento, porque as formas de arte, tendo inevitavelmente esse lado, são sobretudo confrontações do público com a sua própria natureza, que lhes é mostrada no palco”, analisa Catarina Molder. “A força do canto lírico parece que leva as pessoas de regresso à emoção pura e isso é muito importante.”

Esta apresentação, e a do ano passado, fazem parte do projeto Ópera na Rua, da companhia Ópera do Castelo, dirigida por Catarina Molder e Nuno Barroso. Propõem-se “levar a ópera a todos os públicos, em formatos variados” com “novas abordagens do repertório tradicional”.

Estiveram no Intendente em 2013 – “as prostitutas que lá trabalhavam levaram muito a mal que tivéssemos ido para o território delas, mas depois acabaram por entender”, regista a soprano – e têm feito espetáculos no Castelo de São Jorge e noutros espaços improváveis, como jardins públicos.

No ano passado, iniciaram uma colaboração com a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (recente junção de 12 freguesias do centro histórico de Lisboa, incluindo a do Socorro, onde se situava a Mouraria). A Junta produz o espetáculo, num investimento de cerca de 15 mil euros, segundo o Miguel Coelho, presidente da Junta.

“Abrangemos um território de cinco bairros com características culturais muito diversas, desde a Baixa-Chiado, onde estão dos melhores equipamentos culturais da cidade e a gastronomia mais sofisticada, até às zonas mais populares, que são território de fado e de tascas maravilhosas”, explica Miguel Coelho. “As pessoas que nunca ouviram ópera têm aqui uma oportunidade de alargar os seus horizontes”, acredita.

Recordando as origens populares da ópera, baseada em atuações carnavalescas de saltimbancos, Catarina Molder reforça a ideia de ajudar a popularizar o género.

“Vivo na Costa do Castelo, por isso estou também a cantar para os meus vizinhos. Eu, o meu marido e os meus filhos somos fregueses daqui e estamos a dois quarteirões de casa. Esta situação é muito curiosa. Acho que o público está contente e até tem colaborado. Foi preciso instalar algum material em casa das pessoas, temos tido o cuidado de as respeitar, para ganharmos a confiança delas e a vontade de participarem.”

A mesma responsável considera que “estamos na cidade e no país que menos ópera apresenta na Europa”, por isso defende a existência de mais iniciativas. Revela, a propósito, que está a trabalhar com a Câmara de Lisboa e a associação Turismo de Lisboa para organizarem na segunda quinzena de agosto de 2017 a “Ópera Fest”, um festival de teatro lírico feito a pensar nos turistas que visitam a cidade.