Cem escudos, o preço do bilhete pelos três dias. De sexta-feira a domingo, mais de 200 mil pessoas amontoam-se na FIL para participar na festa. E isto é exatamente o quê? É o Avante, camarada. No discurso final da primeira edição da festa, a 26 Setembro 1976, Álvaro Cunhal congratula-se com a paisagem monótona de cabeças e mais cabeças no seu horizonte. “A maior festa, a mais extraordinária, a mais entusiástica, a mais fraternal e humana jamais realizada no nosso país.”

Nos oito palcos, sete interiores e um exterior, três centenas de artistas cantam, discursam, estimulam, entusiasmam e outros que tais. Há de todo o lado e para todos os gostos. Vejam lá bem esta salada de delegações enviadas para Lisboa: URSS, RDA, Bulgária, Polónia, Hungria, Jugoslávia, Checoslováquia, Albânia, Síria, Cuba, Marrocos, Vietname, França, Itália, RFA, Noruega, Chile, Brasil, Uruguai, Frelimo, MPLA e PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde). Daí para cá, o Avante acumula 40 anos, 39 festas (o evento falha em 1987 por problemas com as autarquias e acelera o processo da compra da Quinta da Atalaia, onde hoje habemus discurso de Jerónimo de Sousa para o fecho das festividades). Nesse parêntesis temporal, tudo muda. Tudo?! Tudo, não. Um clube povoado por irredutíveis ainda resiste ao invasor. Como assim, clube? Como assim, invasor?

É o Sporting, camarada. Só o Sporting acumula cinco vitórias em outros tantos jogos de campeonato realizados no último dia do Avante. Cinco em cinco. Não há mais ninguém. Acardite. A aventura começa precisamente em 1976, na primeira edição. Nesse domingo, a FIL está à pinha para ouvir Cunhal. “A liberdade foi alcançada. A nossa grande tarefa é defendê-la. E, se todos quisermos, ela será defendida. Na luta pela liberdade, hoje e sempre, os comunistas não pouparão energias e darão a vida, se necessário, para que não volte a Portugal o pesadelo do fascismo.” Enquanto isso, o Sporting de Jimmy Hagan ganha 2-1 ao Leixões, em Matosinhos, com golos de Da Costa (70’) e Keita (74’) antes do de Zezé (86’). Nesse mesmo instante, o Porto de Pedroto empata no Montijo. E o Benfica? Já jogara na véspera (1-0 de Chalana à Académica).

No ano seguinte, o Avante transfere-se para o Jamor. À hora do discurso de Cunhal, já o Sporting volta de barriga cheia de Coimbra com um 5-1. Aos 60 minutos, até há 5-0. Keita bisa, tal como Jordão. O outro golo é de Manuel Fernandes. Reduz Joaquim Rocha, numa jornada em que o Porto perde 2-0 na Amoreira e o Benfica ganha ao Belenenses na Luz (Chalana, sempre ele). Em 1979, o Avante já nada pelo Alto da Ajuda, em Monsanto. Naquele dia 9 Setembro, o clássico da Luz entre Benfica e FC Porto acaba sem golos. No caldeirão dos Barreiros, sob intensa canícula, o Sporting nem dá pela presença do Marítimo. Pelo menos, a partir da hora de jogo. Jordão abre o marcador aos 60’, Manuel Fernandes dilata aos 68’, Fraguito fixa o 3-0 aos 71’. Sem espinhas.

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Mil-nove-e-oitenta-e-oito, eis o campeonato de novo em rota de colisão com o Avante. Em Guimarães, o Vitória trava o FC Porto (1-1). Em Portimão, o suplente Vata garante o 1-0 do Benfica. Em Lisboa, a uns quilómetros da festa comunista em Loures, o Sporting de Pedro Rocha dá três-secos ao Chaves, com golos de Oceano, Silas e Paulinho Cascavel. Passa-se um ano e, voilà, 1989. Ainda em Loures, antes da mudança definitiva para a Quinta da Atalaia, é a tal quinta (e última) vez da 1.ª divisão no fim-de-semana do Avante. Um dos três jogos é em Alvalade, entre Sporting e Nacional. Em cima do intervalo, Paulinho Cascavel é derrubado na área e Douglas transforma o penálti do 1-0. Na segunda parte, um cruzamento largo de Lima apanha Gomes ao segundo poste e o bibota d’ouro fixa o resultado de cabeça. É uma festa imensa em Alvalade, é o seu primeiro golo à leão.

A partir daqui, o Avante só apanha a seleção nacional e vice-versa. Mais cinco jogos. E nem todos sorriem às nossas cores. A viagem é engraçada porque começa a 5 Setembro 1993, no primeiro Avante sem Cunhal como secretário-geral do PCP e numa altura em que ainda não há muitos emigrantes no onze de Portugal. Nesse fim de tarde em Tallinn, só dois: Oceano (Real Sociedad) e Futre (Marselha) entre os portistas Baía, Couto e Folha mais os benfiquistas Abel Xavier e Rui Costa mais os sportinguista Paulo Sousa e Cadete mais o boavisteiro Nogueira. A vitória pertence-nos com golos de Rui Costa (livre direto) e Folha (estreante), ambos na segunda parte.

Dois anos depois, a 3 Setembro 1995, a Irlanda do Norte silencia as Antas com o golo de Hughes a anular a vantagem de Domingos. Nesse onze de António Oliveira, já há quatro emigrantes (Couto/Parma, Paulo Sousa(Juve, Figo/Barça e Rui Costa/Fiorentina). Encantados com o ambiente de festa proporcionado pelos 40 mil adeptos, que até mete o hino “We are the Champions” antes do jogo, os jogadores portugueses exibem futebol de luxo o tempo todo, só se esquecem de rematar bem à baliza.

Um, dois, três. Passam-se três anos, estamos em plena Expo. Dia 6 Setembro 1998, em Budapeste. Arranca o apuramento para o Euro-2000. A partir daqui, ninguém nos agarra. Nunca mais falhamos nenhum evento. O onze de Humberto Coelho contempla seis emigrantes: Baía (Barça), Dimas (Juve), Figo (Barça), Rui Costa (Fiorentina) e Sá Pinto (Real Sociedad). É este último quem garante a vitória, graças a um bis na segunda parte. Nas bancadas, Eusébio sofre. “Foi terrível. Não estava à espera do 1-1 da Hungria. E apenas o conseguiu num lance em que a sorte foi fundamental. A bolsa ressaltou em Paulo Madeira e estava muito molhada, o que tornou tudo ainda mais inesperado.”

Joga-se agora o apuramento para o Mundial-2002. Na noite de 3 Setembro 2000, Rui Costa, Figo e Sá Pinto contribuem com golos para a vitória por 3-1 em Tallinn. Desta vez, “só” cinco estrangeiros (e nenhum benfiquista) na equipa nacional: Couto (Lazio), Paulo Sousa (Panathinaikos), Figo (Real), Rui Costa (Fiorentina) e Simão (Barça). Na conferência de imprensa, o selecionador António Oliveira dá uma alfinetada no árbitro por fazer vista grossa a um penálti de Figo e anular um golo legal a Jorge Costa. “Como se isso fosse pouco, deslumbrámo-nos com o 3-0 e ficámos individualistas, o que não nos beneficiou nada, porque deixámos de atuar em bloco.”

Quinto e último capítulo do romance entre Avante e Portugal: 7 Setembro 2014. À hora do discurso de Jerónimo, a selecção já está em campo com três sportinguistas (Patrício, William e Nani, capitão), um gverreiro de Braga (Éder) e sete estrangeiros (João Pereira, Ricardo Costa, Coentrão, Monaco, André Gomes e Vieirinha). Falta aqui Ronaldo. Pois falta, o homem está lesionado. Desde o Mundial-2014, aliás. Também não é caso para alarme. Jogamos em casa (Aveiro), com a Albânia. No banco, Paulo Bento respira tranquilidade. E nem o 1-0 de Balaj aos 52 minutos o demove um centímetro. Isto no meio de assobios e lenços brancos. “As pessoas têm todo o direito de se expressar, agora não é boa prática colocar em causa um projeto logo ao primeiro deslize.” Errrrrr. Nessa semana, Paulo Bento sai da seleção. Entra Fernando Santos, vencedor de sete jogos seguidos, todos pela margem mínima. Na fase final do Euro-2016, é aquilo que se sabe: três empates na fase de grupos, uma vitória aos 119 minutos (Croácia), outra nos penáltis (Polónia), uma no tempo regulamentar (Gales) e o golo de Éder aos 109’. O rastilho do Avante tem muito que se lhe diga.

Dos poucos Avante fora de época (ou seja, sem ser em Setembro), um há na memória de todos pela casualidade das datas. Em 1982, o discurso de Cunhal bate com a hora do (tchan tchan tchaaaaaaaaaaaaaaan) Polónia-URSS. É a noite de 4 Julho, em Camp Nou, Barcelona. Ponto prévio, os dois países simplesmente não se dão. Para entender a animosidade, é preciso recuar até Maio 1955, quando os países do Leste Europeu (Albânia, Bulgária, Checoslováquia, Hungria, Polónia, RDA, Roménia e URSS; só a Jugoslávia de Tito se recusa a entrar no bloco) criam o Pacto de Varsóvia, uma aliança militar em que se estabelece o alinhamento com Moscovo, baseado no compromisso de entreajuda em caso de agressões militares. Acontece que as primeiras ações do Pacto, em 1956, se sucedem dentro dos países-membros com a repressão a manifestações populares na Hungria (Budapeste) e na Polónia (Poznan) contra o regime comunista. Em 1968 dá-se a Primavera de Praga (Checoslováquia). Apenas em Março de 1991, com a queda dos governos “socialistas”, a crise da URSS e o fim do Muro de Berlim, é assinada a extinção do Pacto de Varsóvia, que assinala igualmente o fim da Guerra Fria. Nesse hiato temporal, nasce um amplo movimento social anti-soviético chamado Solidariedade, cujo líder Lech Walesa ganha múltiplos apoios internacionais (até do Papa João Paulo II) na vontade de se libertar das amarras incómodas de Moscovo.

De volta ao futebol. No sorteio para os grupos do Mundial, a FIFA sabe perfeitamente que tem de evitar as duas seleções no mesmo grupo. Tudo corre bem na primeira fase. A URSS calha com Brasil (o selecionador Telé Santana encoraja os restantes participantes a evitar importar carne picada argentina), Nova Zelândia (fura o bloqueio das Nações Unidas e joga um particular com a África do Sul, na era do apartheid) e Escócia (not guilty), enquanto à Polónia saem a Itália, os Camarões e o Peru. Acontece que tanto Polónia como URSS passam à ronda seguinte. E há uma segunda fase de grupos. Aí, não há volta a dar: Polónia e URSS, juntos, ao vivo e a cores.

É um grupo de três. A Bélgica leva três dos polacos e um dos soviéticos. No jogo do tudo ou nada, basta um empate à Polónia para chegar às meias-finais. A URSS, essa, tem obrigatoriamente de ganhar. Ninguém marca, acaba 0-0. O empate é a maior vitória da Polónia? Nem por isso. A maior vitória é o episódio da venda de camisolas. Nos dias anteriores ao jogo e até no próprio dia, vêem-se pessoas pelas ruas de Barcelona a passear-se com camisolas a dizer Solidariedade [detalhe: o regime comunista na Polónia proíbe o sindicato de Lech Walesa]. Durante o jogo, também se vêem as ditas camisolas. É mais um momento único no capítulo do futebol político. Ali ao lado, no Alto da Ajuda, em Monsanto, o discurso de Cunhal é sobre a aliança PS-AD. “A revisão da Constituição é um crime contra o regime democrático. Mário Soares é um cúmplice desse crime. Qual a razão porque o presidente da República [Ramalho Eanes] deixa que vá por diante uma revisão da Constituição que, entre outras alterações inconstitucionais, lhe tira poderes fundamentais do seu cargo?”