O que é um borrego? É um substantivo. E um animal, claro. Borrego tanto é um carneiro até um ano de idade como uma pessoa excessivamente boa e pacífica, ou ainda um animal muito manso. Na gíria futebolística diz-se “matar o borrego” quando uma equipa ganha a uma outra não sei quantos anos depois. Acontece, por exemplo, com o Sporting no Bessa (21 jogos, de 1969 a 1990).

Na atualidade, qual é o maior borrego do futebol português? O do Belenenses em Alvalade. Dezembro de 1954, dia 26. Fixem bem esta data, é a da última vitória do Belenenses na casa do Sporting – daí para cá, 47 derrotas e sete empates no campeonato nacional (mais sete derrotas e dois empates para a Taça). É dia de Sporting-Belenenses para a 13.ª jornada, a última da primeira volta. Tanto um como outro fazem pela vida: o Sporting, tricampeão em título, perdera o primeiro lugar para o Benfica na jornada anterior, com o 2-2 na Covilhã, e o Belenenses fora derrotado nas Salésias pelo Braga, surpreendente 3.º classificado.

Com as obras do Estádio José Alvalade, inaugurado em junho 1956, o Sporting (2.º) joga no Jamor com o Belenenses (5.º). O árbitro é Inocêncio Calabote, de Évora. Ao intervalo, 0-0. Na segunda parte, há um jogador melhor que todos os outros juntos. A sua graça é Sebastião Lucas da Fonseca, vulgo Matateu. O 1-0 aparece aos 54’, de cabeça, após cruzamento da direita de Di Pace e palmada (insuficiente) na bola de Carlos Gomes, o tal que se veste de preto em protesto com os “doutores” do futebol (dirigentes e afins).

Juca encarregar-se-ia de empatar aos 79’, com um pontapé de primeira na sequência de um canto de Mendonça. Quando tudo indica 1-1, eis Matateu a dar o ar de sua graça. De um cruzamento de Dimas quase na bandeirola de canto, o avançado cabeceia ao poste e faz a recarga com o pé direito. No balneário do Sporting, o treinador Joseph Szabo anda de um lado para o outro. “Carago, este Matateu ainda vai ser o melhor marcador do campeonato.” E não é que é mesmo? (à conta de 32 golos em 26 jogos).

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Isto é o maior borrego, em matéria de jogos (54). Se formos procurar o maior borrego em anos de vida, aí o do Braga na Luz é superior ao do Belenenses em Alvalade. Pela diferença de dois meses. A data precisa é 31 outubro 1954. É há tanto tempo que Jesus até graceja com o facto durante a conferência de imprensa antes de um Benfica-Braga em 2014. “Isso nem é do tempo do Dom Afonso Henriques.” Lá está, Jesus a ser Jesus. Mistura com graça com savoir-faire. E porquê? Jesus é precisamente de 1954.

Posto isto, lançamo-nos na procura intensa sobre o paradeiro de algum sobrevivente desse heróico onze bracarense. Pai Manels, assim é conhecido no mundo da bola em Braga (e não há como dar a volta), arranja-nos o número de telemóvel da Dona Augusta. Quem? A esposa do Dono José Maria Vieira, homem dos seus 87 anos, recém operado à coluna. “Ai ele agora foi prò café, com o irmão, e já só volta à hora do comer.” Ouro, isto é ouro. Aguardemos serenamente. Afinal, não é todos os dias que se fala com pessoas da idade ali entre o tempo de Dom Afonso Henriques e Jesus. É dose.

Quando o fisgamos, é um fartote. José Maria Vieira tem uma voz animada, bem-disposta. A acompanhar uma memória intacta. Assim, de repente, diz-nos a equipa de uma assentada. “Era o Cesário na baliza. Na defesa, o Antunes, eu e o Abel. No meio, Faria mais Pinto Vieira, ex-Porto. No ataque, o Baptista, depois um espanhol chamado Velez, o Imbelloni como avançado-centro, um miúdo chamado Gabriel e o veterano Corona, vencedor da Taça Latina pelo Benfica em 1950.” Sem parar, José Maria Vieira solta o verbo sobre esse memorável um-zero.

— “Esse jogo continua aqui, na minha cabeça. Sabe quem marcou o golo?”

— Temos aqui Imbelloni. É verdade que ele é também o treinador?

— “Sim, sim. Ele era jogador-treinador. Tinha sido um jogador fabuloso no San Lorenzo, aquela equipa argentina que deu brado na excursão pela Europa nos anos 40, com vitórias sobre Benfica, Sporting, Belenenses, FC Porto, Real Madrid, Barcelona, seleção inglesa. Ganharam a todos e mais alguns. Imbelloni fazia parte dessa equipa e o Braga perguntou-lhe se queria treinar. Ele aceitou, veja bem.”

— E o que aconteceu ao Braga?

— “O Imbelloni tinha 30 anos mas continuava em forma e impôs-nos o estilo argentino. O Braga daquele tempo jogava à bola como gente grande. Não metíamos a bola lá para a frente. Éramos refinados, de pé para pé. Por isso, demos cinco secos ao Benfica em janeiro 1954. Foi cá um festival. Só visto. Contado nem se acredita.” Golos de Gabriel (13’), Teixeira (48’), Teixeira (53’), Gabriel (64’) e Corona (65’). “Não satisfeitos com isso, ganhámos outra vez ao Benfica nesse mesmo ano de 1954.”

Só nos falta descrever a jogada do golo do Imbelloni? “Nesse jogo, marquei o José Águas. Lembra-se dele? Era alto e elegante. Media 1,90 m. Eu só 1,70, mas ganhei-lhe sempre de cabeça. Às tantas, num canto, ele perguntou-me como é que eu saltava tão alto. Tenho molas nas botas, respondi-lhe na brincadeira. Bem, desarmei esse rapaz, o José Águas, corri uns metros, vi o extremo Baptista a desmarcar-se e meti-lhe a bola entre o central e o defesa-esquerdo. Ele vai à linha de fundo e cruza para trás, onde aparece o Imbelloni a rematar. Foi um golo muito, muito bonito.” No Jamor? “Sim, na Catedral.” Como? “O Jamor era então a Catedral. Um pouco parecido com o nosso 28 de Maio, depois 1ºMaio. Maior, claro, mas muito parecido na estrutura de pedra e tudo o mais. E a cidade de Braga em peso estava lá. Foram quatro ou cinco autocarros. Não havia cá carros nem foguetes, os comboios está a ver?, iam sempre em autocarros. Nós chegámos a Lisboa na véspera e ficámos uma noite no Hotel Suíço em Lisboa, ali na Baixa, ao pé da Calçada da Ajuda, à direita, não sei se está a ver?” Errrrrrr.