Dezenas de documentos confidenciais, entre eles relatórios do Serviço de Informações de Segurança (SIS), da GNR e da PSP, apareceram num país da África Ocidental e estariam nas mãos de um cidadão de leste. A fuga de informação e os documentos em mãos erradas poderão pôr em causa a segurança nacional e, consequentemente, a segurança internacional.

Ao que o Observador apurou, os documentos estariam na posse de um cidadão que aparentava ser de leste. E a descoberta aconteceu de forma acidental. O homem em causa recorreu a uma empresa em busca de um serviço. O funcionário da empresa terá então requisitado ao homem uma série de documentos, que lhe foram passados. E no meio deles, “apareceram” uma série de documentos aparentemente confidenciais. O homem que os tinha na sua posse – e que os terá entregue por engano – não mais voltou. Desconhece-se por completo a sua identidade.

O Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), dirigido por José Casimiro Morgado, terá sido imediatamente contactado. Elementos do SIED ter-se-ão deslocado de Lisboa a África para apreender os documentos e tentar perceber se tinham sido, de alguma forma, replicados.

“Todos os documentos dos serviços de informações são classificados por natureza e sujeitos ao regime do segredo de Estado. Se documentos destes aparecem nas mãos de terceiros, há uma quebra de segurança”, afirma ao Observador Rui Pereira, antigo diretor do SIS, que também já teve nas mãos a pasta da Administração Interna. Rui Pereira adverte, no entanto, que esta fuga não tem que ser imputada ao serviço de informações.

O Observador apurou que entre as dezenas de documentos haverá um relatório do SIS com a estratégia do grupo Hell’s Angels (um grupo de motociclistas que nasceu nos EUA e que as autoridades associam a um movimento de grande violência, com ligações criminosas) em Portugal. O documento, concluído em dezembro de 2011, descreve as relações dos Hell’s Angels com grupos motards em Portugal e traça as ligações de alguns dos seus elementos a alegados crimes de tráfico de droga, armas, extorsão e lenocínio, com fotografias de alguns dos seus elementos. Haverá ainda um relatório, feito seis meses depois, que atualiza essa informação e alegadamente dispõe de uma série de nomes e moradas de cada um dos elementos referenciados no grupo.

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Da Direção de Informações da GNR haverá uma informação acerca de uma série de furtos a hotéis no Algarve, com referência e fotografias de cidadãos suspeitos. A informação terá sido pedida à PSP via Unidade de Coordenação Antiterrorismo (UCAT), que congrega elementos da própria GNR, das ‘secretas’, PJ, PSP, SEF e Polícia Marítima em 2009. Também com origem nas informações da GNR, há ainda um relatório sobre supostos assaltos a carrinhas de tabaco a nível nacional. Um crime que no ano de 2010 deixou as autoridades preocupadas.

Também com informação que se percebe ser reservada, haverá entre os documentos que apareceram em África um do Sistema de Informações do Exército que terá sido usado durante um exercício militar de Intelligence. Além das posições dos militares durante o exercício e do objetivo do mesmo, constará até informação pormenorizada como números de telefone e nomes dos militares responsáveis pela formação. Alguns documentos parecem ter sido digitalizados a partir dos documentos originais, outros parecem cópias digitais dos originais.

O que são as “secretas”?

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Chama-se “secretas” ao Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP), no qual se integram o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e o Serviço de Informações de Segurança (SIS). Ao SIRP cabe assegurar a produção de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional e à garantia da segurança interna, respeitando sempre a Constituição. O SIED produz informações que contribuam para a salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança externa do Estado português. Destas informações são feitos os estudos e documentos que forem determinados por ordens superiores. Algumas destas informações são comunicadas às autoridades responsáveis pela investigação criminal. O SIS produz informações que contribuem para a salvaguarda da segurança interna, a prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem e a prática de atos que possam alterar ou destruir o Estado de direito, como refere a lei 50/2014 que estabelece a orgânica destes três organismos.

Na mesma pasta de documentos haverá ainda manuais de segurança a instalações internacionais e um manual de Intelligence da NATO na sua versão inglesa, que também se encontram disponíveis em fontes abertas através da internet. E, ainda, um organograma sobre uma alegada rede de narcotráfico que opera a nível internacional com todas as suas ligações. Este esquema estará escrito em português.

Segundo Rui Pereira, estes documentos “não funcionam em circuito fechado”. “Estes documentos têm destinatários, têm de ser comunicados às autoridades competentes que investigam esses crimes. São informações ao serviço do Estado português”, explica o ex-governante e ex-diretor do SIS.

O Observador apurou que o documento alegadamente produzido pelo SIS, por exemplo, apesar de confidencial, foi distribuído aos chefes de gabinete do primeiro-ministro, do secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa e do Sistema de Segurança Interna e também ao chefe de gabinete do Ministério da Justiça de então. Foi ainda enviada uma cópia aos responsáveis pelo SIS, pela PJ, pela GNR e pela PSP, assim como ao chefe da Casa Civil do Presidente da República.

“A quebra de segurança pode ter-se verificado num dos destinatários dos documentos, que poderão tê-los encaminhado para um destinatário que não era admissível. Pode, também, eventualmente, haver uma manobra de espionagem de outro país. Os serviços de informações de outros países podem ter obtido essa informação”, explica Rui Pereira. Desta forma, a fuga pode até ser atribuída a outro país. “Só um inquérito o poderá determinar”, resume o antigo diretor do SIS.

Rui Pereira lembra que saiu do SIS há 16 anos e que desconhece as práticas atuais. Mas reconhece que estes documentos não serão, à partida, enviados via e-mail normal de uma entidade para outra, e também não deverão ser colocados em pens. O ex-ministro deixa ainda bem claro que não concorda com chamar “Serviços Secretos” aos Serviços de Informações. “Nos países democráticos há Serviços de Informações, nas ditaduras há polícias políticas”, esclarece.

Quem era o estrangeiro que tinha documentos secretos portugueses?

O SIED ainda terá tentado localizar o cidadão de leste que teria na sua posse as informações confidenciais, mas o homem nunca mais foi visto naquele país africano. A ideia era perceber como lhe chegaram estes documentos. O Observador apurou que o homem em causa poderá estar relacionado com uma rede criminosa desmantelada uma semana antes destes acontecimentos.

Escândalo nas “secretas” acabou em tribunal

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O aparecimento de documentos secretos num país africano e a detenção de um espião do SIS suspeito de vender informações confidenciais no estrangeiro não são os primeiros casos relacionados com as “secretas” portuguesas a serem motivo de notícia. Já em novembro será conhecida a sentença no processo que envolve o ex-diretor do SIED, Silva Carvalho, acusado de violação do segredo de Estado, corrupção ativa e passiva para ato ilícito e acesso ilegítimo a dados pessoais. O caso das “secretas”, como ficou conhecido, aconteceu entre 2010 e 2011 e envolve quatro outros arguidos (dois funcionários do SIED, uma funcionária da Optimus e um responsável da Ongoing). O caso começou com uma notícia no jornal Público, que acabou com os registos telefónicos do jornalista que assinou a peça a serem passados a pente fino pelas “secretas”.

Na altura, o El Pais noticiou que um multimilionário e ex-militar polaco tinha sido detido em Ibiza, Espanha, por suspeita de tráfico de armas. O homem despertou a atenção das autoridades locais por ter um passaporte diplomático guineense que se revelou falso. Mais. Estava sempre rodeado por seguranças e possuía uma enorme frota automóvel.

Segundo a Polícia Nacional espanhola, as ligações internacionais do suspeito eram de tal forma em grande escala que este chegou a usar um avião presidencial da Gâmbia para ir até ao país em negócios, a partir da Polónia. Segundo a investigação, que se prolongou por quatro anos e culminou noutras nove detenções, o suspeito chegou a vender material de guerra para o Sudão do Sul.

O homem de leste que teria na sua posse várias informações confidenciais portuguesas teria ligações a este grupo criminoso. Resta saber quem lhe passou para as mãos dezenas de documentos confidenciais.

Governo não comenta

O Observador contactou três vezes o SIED para obter esclarecimentos sobre o caso e perceber se durante o último mês foi descoberta a fuga da informação confidencial, mas continua sem obter qualquer resposta.

Também do gabinete do primeiro-ministro, a quem o SIED responde hierarquicamente, não foi dada qualquer resposta. O Observador perguntou se António Costa tinha sido informado deste caso e se corria alguma investigação para apurar de onde partira a quebra de segurança. Mas não obteve qualquer resposta.

A Procuradoria Geral da República também ainda não respondeu se corre algum inquérito no Ministério Público.

Espião foi apanhado a vender informações

Dois meses antes de estes documentos aparecerem num país da África Ocidental, um outro acontecimento tinha chegado aos jornais, envolvendo as secretas portuguesas. Um funcionário do SIS foi detido pela PJ, numa investigação coordenada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal. O espião Frederico Carvalhão Gil foi detido, a 21 de maio, na esplanada de um café no centro de Roma, em Itália, quando alegadamente passava informações a Sergey Nicolaevich Pozdnyakov, um agente russo da SVR, sucessora do KGB. O agente russo foi entretanto libertado, mas Carvalhão Gil continua preso em casa.

O agente do SIS andava a ser investigado desde novembro de 2015, depois de ter sido fotografado por serviços secretos num encontro com o espião russo, mas foi mantido em funções como analista de informação para não suspeitar da investigação.

Carvalhão Gil encontra-se em prisão domiciliária. Quando foi presente a tribunal o seu advogado, José Preto, disse que os 10 mil euros que o seu constituinte recebeu foram de “natureza comercial.”