A política é narrativa e cada político conta a sua versão da história durante os discursos em que comunica com os eleitores. O discurso é tudo: palavras, gestos, intencionalidade e ainda aspetos incontroláveis, como as muletas de linguagem. Veja em cima o vídeo com um discurso de Assunção Cristas em slow motion — assim, pode reparar não só na retórica, mas também nos detalhes da linguagem corporal da líder do CDS. Neste texto, identificamos uma palavra-chave do seu eixo de comunicação, explicamos como prepara os discursos e evidenciamos as bengalas de linguagem. (Vídeo e montagem de Fábio Pinto)

A palavra-chave

“Classe média”

O CDS entrou no novo ano político com uma narrativa na manga: a defesa da classe média. Foi assim que Assunção Cristas marcou a sua intervenção no encerramento da Escola de Quadros do CDS, em Peniche, e foi à volta desse eixo que giraram todas as intervenções de dirigentes e deputados desde então. “Temos um Governo que, para satisfazer as clientelas das esquerdas unidas, prejudica a classe média. Para satisfazer os desvarios das esquerdas unidas aumentou-se a carga fiscal sobre os portugueses, aumentaram-se impostos e procuraram-se pretextos para tributar património”, disse perante os jovens democratas-cristãos. O CDS começava assim a sua busca pela classificação do que é classe média: “No que depender da esquerda radical, a classe média é vista como rica. Se tem carro, é rico. Se tem casa própria, é rico”. Por esta altura ainda não tinha estourado a polémica sobre o novo imposto sobre o património imobiliário de elevado valor, anunciado por Mariana Mortágua — mas o discurso dos centristas já estava desenhado.

O alvo é, neste momento, mais do que o Governo do PS, os partidos da esquerda. A ideia é provar a tese de que a agenda das esquerdas, dos sindicatos e dos partidos mais extremistas está a ditar a ação do Governo. E que, para satisfazer as suas pretensões, assim como para colmatar o facto de o modelo económico do Governo não estar a ter reflexos no crescimento da economia, ataca-se o bolso da classe média.

Como Cristas prepara os discursos?

Em equipa e escreve os números

Na sala do hotel em Peniche, Adolfo Mesquita Nunes, um dos vice-presidentes de Assunção Cristas, mais parecia um assessor de imprensa. Enquanto a líder do partido discursava, exatamente à hora marcada (para evitar o atropelo mediático que viria a ocorrer com Passos Coelho em Castelo de Vide), Mesquita Nunes colocou-se ao lado do assessor Pedro Salgueiro, no fundo da sala, e seguia o discurso pelo papel. Para ver se não falhava nada.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Normalmente, Assunção Cristas fala de improviso”, nota o vice-presidente do CDS ao Observador, recordando que foi isso que fez em Oliveira do Bairro, no discurso que o partido escolheu para ser “o” discurso da rentrée e o discurso do anúncio da candidatura de Cristas a Lisboa. Mas não foi o que fez em Peniche, no início de setembro, na primeira intervenção de fundo do pós-férias. Esse discurso foi escrito por Assunção com a colaboração dos vices do partido. No dia anterior, Adolfo Mesquita Nunes já tinha ensaiado uma fórmula desse mesmo discurso quando foi orador de um dos painéis sobre economia na Escola de Quadros dos jovens centristas e onde disse que o Governo do PS estava a atacar a classe média à custa da agenda das esquerdas.

Menos experiente e menos habituada ao palco político do que os seus adversários diretos, que, como Passos ou Costa, foram formados nas juventudes partidárias; ou bem menos experiente na oratória e nos sound bites do que o seu antecessor Paulo Portas, Assunção Cristas estuda bem as intervenções que faz. “A primeira versão é dela, mas fala com os vice-presidentes e com os dirigentes mais especializados nas várias áreas e aceita contributos”, diz ao Observador um colaborador próximo. As diferenças em relação a Paulo Portas estão na cabeça de todos: ele decidia tudo em cima do joelho, escrevia a letras gordas alguns tópicos para se orientar e o resto fluía por si; ela, pontual e bastante mais regrada, tem de ter tudo organizado de antemão.

“Reúne a comissão executiva [órgão de direção mais restrito] com regularidade, é aí que decidimos o que deve ser dito e o que não deve”, diz Adolfo Mesquita Nunes, recordando ainda conversas telefónicas que são feitas regularmente para decidir “temas e abordagens”. Por não ter a mesma facilidade de Passos Coelho em memorizar os números todos, Assunção Cristas deixa para os discursos escritos a parte mais económica, e para os discursos mais improvisados a parte mais política e, porventura, mais emotiva.

Foi por isso que, em Peniche, enumerou todos os indicadores económicos (do crescimento à dívida, passando pelo consumo, investimento, exportações, tudo dividido por trimestres e períodos homólogos) que podiam servir de prova ao falhanço do modelo de governação. “Era um ambiente mais fechado (apesar de a plateia serem os mais jovens) e por isso o discurso teve mais números”, explica o vice-presidente Adolfo Mesquita Nunes ao Observador. Já em Oliveira do Bairro, “num ambiente mais aberto e descontraído”, sem números, Cristas deixou-se levar pela poesia e ficou célebre a frase que usou para justificar a sua candidatura a Lisboa:

Tenho o vento de Lisboa colado à pele e a água do Tejo no fundo da alma”.

As bengalas de linguagem

“Creio que…” mas “pasme-se!”

“Creio que”, “é precisamente isso que”, mas, “pasme-se”, “há quem” faça isto, “há quem” faça aquilo. Se há fórmula discursiva que não falha é a enumeração e a comparação: há quem faça isto e aquilo, depois há quem faça aquilo e aqueloutro. De uma só vez, faz duas coisas: enumera os erros dos outros e, por oposição, explica o que faria se estivesse naquele lugar. No primeiro discurso da rentrée, em Peniche, Assunção Cristas usou e abusou das bengalas comparativas discursivas. E das conjunções copulativas (“e”) para adicionar mais “e” mais informação.

O discurso tinha muitos números “e” estava muito esquematizado e Assunção repetia os “e” mais um bocadinho, para se perceber de forma simples. Estava tudo escrito, não tinha como se enganar. Mesmo assim, “eu diria que” precisou de mais bengalas: as interrogações e o raciocínio causa-consequência. Cristas perguntava, Cristas respondia. “E o investimento? Temos as piores notícias”. “Resultado? Sindicatos satisfeitos”. “Tem casa própria? É rico. Tem carro? É rico”. “Mas sabem qual é o dado mais recente da dívida? 131,6%”. “E qual é o resultado? Um crescimento muito abaixo do esperado”.

E ainda têm o descaramento de dizer que isso não é um problema”. “E é isso que está a acontecer”. “E eu sei que….” “E eu diria que…” E isto, e aquilo. Apesar de o discurso estar todo escrito, Cristas não dispensou as bengalas para se apoiar.