Foram quatro anos de escravidão. Mário (nome fictício) deixou-se convencer por um teto onde dormir e um maço de tabaco. Aceitou seguir com aquela família e acabou vítima de agressões graves e trabalhos forçados a troco de nada. Uma vez a força das agressões empurraram-no para uma cama do hospital de onde tentou fugir. Em vão. Voltou a ser dominado pela mesma família. Até que um dia conseguiu mesmo escapar e apresentar queixa na polícia. Foi no início de 2016 e desde a sua denúncia a Polícia Judiciária deteve três mulheres e um homem. Uma dessas mulheres será esta quinta-feira presente a tribunal.
A descrição que Mário fez à PSP era “surreal”, conta ao Observador uma fonte da Polícia Judiciária de Setúbal. O homem contou que nos últimos quatro anos tinha sido obrigado a trabalhar na zona de Setúbal e na Lourinhã sem nunca ver um tostão pelo seu trabalho. Foi agredido com violência. Numa das vezes atacaram-no com um pé de cabra e partiram-lhe um braço. Ainda tentou fugir do hospital onde esteve internado, mas a mesma família que disse que ia acolhê-lo acabaria por sequestrá-lo novamente.
A denúncia foi feita no início deste ano e Mário tem sido, desde então, acompanhado pela Polícia Judiciária na tentativa de recuperar uma vida normal. Mas, como é alcoólico, “tem sido difícil”, conta a mesma fonte. Eram precisamente “indigentes, sem-abrigo e pessoas com problemas de alcoolismo” que esta família procurava. Homens que facilmente se deixavam convencer por um teto, um maço de tabaco ou um prato de comida.
Através do seu domínio e do ascendente que criavam sobre as vítimas, a família acabava a explorar estes homens. “Obrigavam-nos a vender artigos em feiras, a trabalhar na construção civil ou em trabalhos agrícolas, como na apanha da batata”, refere o responsável pela investigação.
E foi na Lourinhã que, em julho, a PJ resgatou três outras vítimas à mesma família. “Viviam trancados num contentor mínimo. Alimentados por restos de comida, sem casa de banho e só libertados para trabalhar”, descreve o investigador. Estas outras vítimas, entre os 40 e os 50 anos, estavam sequestradas há mais de dois anos e quem recebia o dinheiro pelo seu trabalho era a família agora detida.
Naquele dia, quando a operação policial salvou três vítimas, foram detidas duas mulheres e um homem. Ele ficou em prisão preventiva, elas foram libertadas. Sob vigilância das autoridades ficou uma terceira mulher, de 40 anos, que para a PJ era uma das responsáveis pela angariação de vítimas. Foi detida esta semana. Será presente esta quinta-feira ao tribunal para aplicação de medidas de coação.
A PJ acredita estar perante uma prática que se vai mantendo há já dez anos. “Acreditamos que esta família tem explorado indigentes nos últimos dez anos. Até os mais novos na família, falo de crianças, estão instruídas para controlar estes escravos”, refere a fonte contactada pelo Observador.
“Temos que perceber se há mais vítimas. Parece uma atividade relativamente organizada. Estas coisas acontecem em pleno século XXI, à nossa porta”, diz fonte da PJ.
Segundo o comunicado da PJ, enviado esta quinta-feira, a mulher agora detida é suspeita “dos crimes de sequestro, escravidão e tráfico de pessoas”. “As vítimas, obrigadas a efetuar diversas tarefas sem qualquer remuneração, foram agredidas fisicamente e ameaçadas de morte caso tentassem fugir ou recusassem trabalhar, subsistindo em condições degradantes”, lê-se.
Já na primeira parte da Operação “Clausura”, assim denominada pela PJ, as autoridades tinham detido, como atrás referimos, um homem e duas mulheres, entre os 18 e os 41 anos. Só ele ficou preso. Na altura a PJ dizia em comunicado que as três vítimas resgatadas — as que dormiam e comiam fechadas num contentor — tinham sido entregues aos cuidados de uma associação. Ao que o Observador apurou, ainda ali permanecem. A mulher agora detido foi libertada pelo juiz, mas sob obrigação de apresentar-se periodicamente à polícia.
(Artigo atualizado com medida de coação aplicada à última mulher detida.)