Foi na resposta à última pergunta de Assunção Cristas durante o debate quinzenal desta quinta-feira. A certa altura António Costa quis definir o que, para ele, era uma “sociedade decente”. E fê-lo nos seguintes termos: “é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades”.

A frase, contudo, não é original: é de Karl Marx e foi escrita em 1875 num dos seus panfletos mais influentes, a Crítica ao Programa de Gotha. Aí ele também define a sociedade que deseja: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”.

Pormenor importante: a sociedade a que Marx se referia não era a sociedade socialista, mas sim a utópica sociedade comunista.

Vale a pena ler (e comparar) não apenas aqueles dois extratos, mas as frases inteiras, começando por António Costa, 22 de setembro de 2016:

“Entender que é absolutamente essencial trabalhar, é essencial investir, que é importante poupar, que é boa uma sociedade de iniciativa, mas também quero uma sociedade que seja decente e uma sociedade decente é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades. E que a prosperidade gerada por todos possa ser justamente partilhada por todos. Foi esta sociedade que eu aprendi na minha casa a acreditar”

E agora Karl Marx, no Crítica ao Programa de Gotha, 1875:

“Quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspetos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.”

Este texto do autor do Manifesto do Partido Comunista e de O Capital tem um significado especial pois o Programa de Gotha a que se refere é o programa que seria aprovado no congresso que daria origem ao Partido Social-Democrata alemão. Marx considerava, na sua crítica violenta aos socialistas alemães, que esse programa não correspondia a uma plataforma revolucionária, antes a um compromisso reformista baseado no “revisionismo” dos fundamentos essenciais do marxismo. Mais: para Marx era necessário, para chegar ao socialismo e ao comunismo, passar por uma fase que designou como “ditadura do proletariado”, conceito que, de resto, desenvolve nessa sua obra.

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Vivíamos uma época em que o movimento socialista se começava a dividir: de um lado, os revolucionários que seguiriam a linha mais ortodoxa defendida por Marx na sua crítica à plataforma dos social-democratas alemães; do outro lado, os socialistas reformistas que preconizavam mudanças graduais, favoráveis aos trabalhadores, no quadro de regimes democráticos. Os primeiros dariam origem aos partidos comunistas, os segundos aos partidos socialistas e social-democratas que seriam centrais nas reformas que levariam aos modernos Estados Providência.

Para Marx, na sua Crítica ao Programa de Gotha, uma sociedade que funcionasse de acordo com o princípio “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” corresponderia ao estádio supremo do comunismo, tendo mais tarde Lenine, o fundador a União Soviética, popularizado essa definição. Fê-lo, nomeadamente, numa das suas obras mais conhecidas, O Estado e a Revolução, onde cita aquela passagem do livro de Marx antes de explicar que, para chegar a essa sociedade ideal, era necessário passar por várias fases, nomeadamente a “expropriação dos capitalistas” e o controlo pelo Estado de todas as forças produtivas.

Já o socialismo, mesmo sendo visto como uma fase de transição para o comunismo, caracterizar-se-ia antes por ser aquela sociedade onde cada um receberia de acordo com a sua contribuição. A concretização desse princípio não supunha – o que mereceu a crítica de Marx – a superação daquilo que designava como a “ordem burguesa”.

Refira-se ainda que a intervenção de António Costa surgiu depois de Assunção Cristas lhe ter pedido para se diferenciar dos que, na esquerda radical, acham que “para acabar com a pobreza é preciso acabar com a riqueza”.

Quanto à referência ao que aprendeu “em casa”, recorde-se que António Costa é filho de Orlando Costa, escritor e militante do Partido Comunista, e de Maria Antónia Palla, jornalista que sempre foi próxima do PS.