Os comunistas vão estar reunidos este fim-de-semana para o XX Congresso do partido. Nas teses que vão levar ao conclave, aprovadas pelo Comité Central do PCP e que são, na prática, a base da resolução política do partido, os comunistas passam em revista as conquistas e limitações da “geringonça”, falam sobre o futuro da solução política, fazem críticas aos compagnons de route — PS e Bloco de Esquerda — e reafirmam a urgência de preparar o país para a saída do Euro.

Por entre considerações sobre a situação internacional e o “impacto negativo” das derrotas da URSS e do socialismo no Leste da Europa, os comunistas olham para dentro de casa e reconhecem que o PCP enfrenta uma “situação financeira insustentável”. Nas 102 páginas que vão levar ao congresso, os comunistas parecem deixar pistas sobre um eventual reforço da direção. Número dois de Jerónimo na calha?

Governo socialista dura enquanto o PS quiser (ou puder)

É uma das mensagens deixadas pelo Comité Central do PCP: a “durabilidade” da solução política encontrada depende “diretamente da adoção de uma política que assegure a inversão do rumo de declínio e retrocesso imposto pelo governo anterior” e que “corresponda aos interesses e aspirações dos trabalhadores e do povo”.

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O aviso não é novo. Os comunistas vêm repetindo que, enquanto António Costa conseguir manter o equilíbrio entre a necessidade de cumprir as regras do euro e do Pacto Orçamental — com as quais o PCP não concorda — e a urgência de devolver rendimentos e repor direitos sociais, não serão os comunistas a contribuir para o fim da “geringonça”. Se o Governo socialista recuar no que quer que seja, ou for forçado a fazê-lo, a corda romper-se-á.

Esse é o compromisso assumido desde o primeiro momento pelo PCP e os comunistas sabem o que isso significa: continuar a contribuir ativamente para uma solução política que apresenta numerosas “contradições” e “limitações”. Esta é uma evidência que o Comité Central volta a notar nas teses que vai levar ao Congresso do partido:

A solução política alcançada não responde naturalmente ao indispensável objetivo de rutura com a política de direita e à concretização de uma política patriótica e de esquerda. Tem como expressão política o grau de compromisso correspondente ao nível de convergência alcançado entre PCP e PS, limitado pelas óbvias e afirmadas diferenças programáticas e de percurso, inscrita na Posição Conjunta do PS e do PCP sobre solução política”, escrevem os comunistas.

Tal como fizera Jerónimo de Sousa no comício de encerramento da 40ª edição da Festa do “Avante!”, o Comité Central do PCP volta a frisar que a solução política encontrada não se reflete na formação de um Governo ou de uma maioria de esquerda, mas sim na “entrada em funções de um Governo minoritário do PS com o seu próprio programa”. “O PCP mantém total liberdade e independência políticas“, assegura o órgão máximo do partido entre congressos. Orçamento do Estado para 2017 incluído.

As críticas à direita (e não só) e o aviso ao PS: palavras leva-as o vento

Na análise ao quadro político e partidário que resultou das eleições legislativas de 2015, o PCP não hesita em lançar duras críticas ao PSD: “O instrumento privilegiado para o aprofundamento da política de direita e a força política com a qual mais se identificam os círculos mais reacionários do capital monopolista e do diretório da União Europeia”. Mas também ao CDS. “Mantém uma intervenção determinada pela instrumentalização populista de setores e temas sociais para procurar iludir a sua profunda natureza reacionária e a sua agenda orientada para o ajuste de contas com Abril“.

No entanto, bloquistas e socialistas não passam incólumes às observações do Comité Central do PCP. Primeiro, o Bloco de Esquerda. Escrevem os comunistas: “O BE, que continua a beneficiar de uma promoção e proteção mediáticas [uma crítica feita desde a fundação do Bloco] cultiva uma agenda e um posicionamento assentes num verbalismo que não altera o seu caráter social-democratizante“.

Ainda que reconheçam que existem, “em várias matérias”, “zonas de convergência”, o PCP não deixa de notar que, mesmo essas convergências, “não anulam diferenças nítidas, quer no plano da União Europeia e das conceções federalistas que o norteiam [ao Bloco], quer nas políticas, e nas prioridades de ação no plano nacional”.

Sobre o PS, os comunistas relembram as responsabilidades daquele partido no “Pacto de Agressão” e a “conivência com a ação do governo PSD/CDS” e repetem o recado: o facto de os socialistas estarem agora a inverter a política seguida pelo anterior Executivo não significa que se tenham transformado num partido de esquerda. Além disso, de boas intenções está o inferno cheio, vão sugerindo os comunistas: é preciso passar de proclamações aos atos.

O PS, ainda que com hesitações e contradições, acabou por contribuir para se abrir uma nova fase na vida política nacional. Posição que não transforma o PS num partido portador de uma política de esquerda. (…) [A] caracterização do posicionamento do PS não decorre das suas afirmações mas sim da prática concreta face à necessária rutura com a política de direita”, argumentam.

E nem o PAN escapa às críticas: “Exacerbação populista“, clama o PCP. “O PAN, centrando fundamentalmente a sua acção na problemática da defesa dos animais, não raras vezes por via de uma ação geradora de dispersão e da exacerbação populista de algumas matérias, procura consolidar a sua base eleitoral de apoio.”

A inevitabilidade de preparar a saída do Euro e o controlo público da banca

São, há muito tempo, bandeiras do PCP, pelo que a inclusão destas ideias nas teses a levar ao Congresso não representa surpresa: os comunistas acreditam que o país precisa de se preparar para a saída do euro para regressar a uma moeda própria. A renegociação da dívida da pública, “nos seus prazos, juros e montantes”, e o controlo público da banca surge como passo obrigatório neste caminho de recuperação da autonomia do país, defendem.

Portugal precisa de se libertar do Euro e dos constrangimentos da integração monetária. Precisa de uma moeda adequada à realidade e às potencialidades económicas do País, aos seus salários, produtividade e perfil produtivo, que concorra para os promover, ao invés de os desfavorecer. Precisa de uma gestão monetária, financeira, cambial e orçamental autónoma e soberana, ajustada à situação.

Sobre o sistema financeiro, a conclusão do PCP é simples: a banca nacional, “tal como outros setores estratégicos, ou é pública ou não é nacional“. Ponto final.

Contas do partido e redução de militantes preocupam o PCP

O número de militantes e o estado das contas do partido também são passados minuciosamente em revista. Os comunistas reconhecem que a situação da tesouraria do PCP está longe de ser a mais animadora: entre 2008 e 2012, o prejuízo médio anual cifrava-se nos 200 mil euros; entre 2012 e 2015 esse valor médio anual passou a ser de um milhão e 82 mil euros, “o que representa um agravamento que não permitiu ultrapassar a situação financeira insustentável identificada no último Congresso”.

O órgão máximo do partido entre congressos reconhece que só com o recurso às “receitas extraordinárias e institucionais” (“gestão de património, subvenções, entre outras”), que aumentaram desde 2012, “foi possível fazer face à situação deficitária, obtendo-se um resultado financeiro global nos quatro anos de 1 milhão e 261 mil euros”.

Sinais preocupantes, que os comunistas não ignoram: uma das prioridades do partido passa pelo equilíbrio das contas, através, sobretudo, de “contenção de despesas”, “rentabilização do património” do partido e por uma campanha de regularização das quotas em atraso.

Esta última prioridade é, de resto, uma das maiores preocupações do PCP: de acordo com as estimativas dos comunistas, apenas “43% dos membros do partido estão a pagar quotas” e “continua por clarificar a situação de dezenas de milhares de inscritos anteriores a 2003”.

O Comité Central do PCP também não ignora a redução do número de militantes desde o último levantamento: o partido tem hoje “54 280 membros” — em 2012, o partido contava com 60 484 militantes filiados. “Uma redução indissociável do esclarecimento de situações no âmbito da ação de contacto com os membros do partido”, assumem.

Número dois de Jerónimo na calha?

A 27 de novembro de 2015, em entrevista ao Expresso, Jerónimo de Sousa admitia publicamente que o congresso comunista poderia significar uma “alteração de responsabilidades”. Uma assunção que, aliada aos rumores insistentes sobre um movimento interno que pretendia antecipar o Congresso, foi interpretada como um sinal de que Jerónimo estaria de saída da liderança do PCP.

No entanto, o papel indispensável de Jerónimo de Sousa nos arranjos parlamentares de suporte ao Governo e o desempenho da “geringonça” nos primeiros meses de rodagem parecem ter desmentido uma inevitabilidade que, há um ano, parecia óbvia: o Congresso comunista ia representar a passagem de testemunho no PCP.

Aparentemente afastado esse cenário, como explicava aqui o Observador, as palavras de Jerónimo de Sousa podem encerrar em si mesmo uma pista importante para o futuro do partido: os comunistas podem começar a desenhar a sucessão de Jerónimo de Sousa já neste congresso, elegendo um secretário-geral-adjunto, algo não existe na estrutura do partido.

A figura de secretário-geral-adjunto nem sequer é nova na história do PCP. Em 1990, Carlos Carvalhas foi eleito número dois de Álvaro Cunhal quando o histórico líder comunista preparava já o caminho para a próxima geração.

Nas teses preparadas pelo Comité Central do PCP para este congresso há várias referências à necessidade de reforçar a direção do partido — o que, por si só, não significa que os comunistas se estejam a preparar para reeditar o modelo deixado por Cunhal.

Defendem os comunistas: “Tendo em conta a situação e as exigências que se colocam, o XX Congresso aponta orientações prioritárias para o reforço do Partido: no plano do trabalho de direção, densificando meios e capacidades, afirmando e reforçando o trabalho coletivo, a responsabilidade individual, a iniciativa, coordenação e disciplina; no plano dos quadros, assegurando mais camaradas com responsabilidades permanentes“.

Sugestões como esta vão-se repetindo ao longo do texto. “O trabalho de direção nos últimos anos foi de particular exigência. (…) A complexidade e exigência de uma tal situação comprovou a capacidade de análise, resposta e iniciativa e evidenciou aspetos que são em si caminhos para o indispensável reforço do trabalho de direção”, defendem os comunistas. Agora, com no novo quadro político que o partido atravessa, “as exigências que estão colocadas são muito grandes”. Nesse sentido, dizem, é “indispensável reforçar estas estruturas [Comité Central e órgãos executivos], promover um melhor aproveitamento dos meios existentes e assegurar uma mais eficaz coordenação”.

Num partido que não costuma deixar espaço para coincidências, mesmo que seja prematuro falar num número dois de Jerónimo de Sousa, são sinais que não devem ser ignorados.

*Artigo originalmente publicado a 26 de setembro