“Afinal, porque é que os colombianos votaram contra a paz?” É esta pergunta que se ouve na manhã desta segunda-feira, depois do resultado chocante do referendo que pretendia selar a guerra entre as FARC e o exército colombiano com esta pergunta:

“Apoia o acordo final para o fim do conflito e para a construção de uma paz estável e duradoura?”

Por um se ganha, por um se perde, e foi mesmo assim que a paz ficou em stand by depois da votação de domingo, onde o “sim”, com 49,78%, não conseguiu sobrepor-se ao “não”, que teve 50,21%. Os números são claros, mas escondem ainda um outro dado: apenas 37,42% do eleitorado foi às urnas. E, já agora, além do “sim”, também houve outro derrotado da noite: as sondagens, que apontavam confiantemente para uma vitória que não se confirmou.

Como a pergunta do referendo indica, aquilo que foi a votos neste domingo não foi a paz em si, mas sim os acordos para a paz, que foram firmados entre as duas partes em Havana, sob a mediação do Presidente cubano, Raúl Castro. Assim, a pergunta mais acertada para compreender o resultado do referendo na Colômbia não é aquela que é referida na primeira fase deste artigo, mas sim outra: porque é que os colombianos votaram contra este acordo de paz? E, já agora, o que é que pode acontecer daqui para a frente?

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Nas vésperas do referendo, todas as sondagens davam uma vitória ao “sim”. A vitória do “não” por apenas 0,43% chocou muitos.

O que dizia o acordo e porque foi rejeitado?

“Todos quisemos algo mais, mas é o melhor acordo possível.” Foi assim que reagiu, à altura do anúncio do acordo entre o Governo da Colômbia e as FARC, o chefe de negociações enviado de Bogotá pelo Presidente Juan Manuel Santos, Humberto de la Calle. “Virão discussões, ajustes e sacrifícios”, reconheceu. “Necessitamos de compreensão, altruísmo, tenacidade e paciência.” E, mais à frente pôs a decisão nas mãos do povo colombiano: “Devemos esperar com humildades pelo veredicto da cidadania (…). Estamos confiantes de termos conseguido um pacto fundamental e útil para o país”.

Segundo o documento final das negociações, o pacto assenta em cinco pilares:

  1. A reforma agrária, que prevê a distribuição de terra para os camponeses sem-terra, através do estabelecimento de um “fundo de terras”. Além disso, está contemplada a atribuição formal de terrenos aos agricultores que trabalhem terras para as quais não fizeram uma escritura. Está também previsto uma aposta em infrastruturas, como o abastecimento de água potável para populações rurais, ou na construção de escolas e hospitais.
  2. Participação política, ou, como lhe chamaram no acordo, “abertura democrática para construir a paz”. É aqui que reside um dos pontos mais controversos deste pacto: a integração das FARC no sistema político colombiano. Para aqui chegar, há uma contrapartida máxima: o desarmamento daquele grupo, ou seja, a renúncia total do uso da violência para atingir fins políticos.
  3. Fim do conflito, ou seja, o desarmamento das FARC, que deverão entregar às suas armas às Nações Unidas consoante um cronograma de 180 dias. Durante este período, teriam de entregar as suas armas em locais escolhidos para esse fim e dar início à sua entrada na vida civil, obtendo a documentação necessária para tal, como o bilhete de identidade.
  4. A luta contra o narcotráfico, que será em parte inserida no programa para a reforma agrária, com a implementação de um sistema de adoção de novas culturas agrícolas para os terrenos que têm servido para alimentar o tráfico de drogas. Além disso, o pacto previa um fortalecimento da luta contra o narcotráfico através do combate e perseguição às redes criminais.
  5. Acordo para as vítimas do conflito, que, a par do segundo ponto, também levantou um coro de críticas. Porquê? Porque prevê “a mais ampla amnistia possível” para quem cometeu “delitos políticos ou relacionados”, através de um sistema de justiça próprio e exclusivo do processo de paz. Aqui, inclui-se por exemplo o crime de rebelião (delito político) ou o porte ilegal de armas (relacionados). Porém, é difícil perceber até onde vão os relacionados. Por exemplo, o narcotráfico, poderá figurar nesta categoria, se for provado que este era usado para financiar os esforços de guerra como meio político. Ainda assim, o acordo é claro quando diz que fora deste leque estão crimes como “delitos de lesa humanidade, genocídio, graves crimes de guerra” e ainda outros, como o sequestro, desaparecimento de pessoas ou violações”. Para aqueles que confessarem estes crimes, serão aplicadas penas cinco a oito anos de “restrição efetiva de liberdade”. Neste regime, os condenados estarão sob vigilância e serão usados para contribuir para o processo de normalização da situação, trabalhando ativamente na desminação de territórios e na substituição de cultivo nos terrenos agrícolas usados pelo narcotráfico. Só serão sujeitos a pena de prisão efetiva os arguidos que sejam considerados culpados daqueles crimes e que não os admitam ou que o façam de forma “tardia”.

Seria, mesmo, este “o melhor acordo possível”, conforme lhe chamou o chefe da equipa de negociações do lado do Governo colombiano? Agora sabemos que 50,21% daqueles que votaram no referendo deste domingo discordam de Humberto de la Calle e do acordo por ele conseguido com as FARC em Havana. Por trás destes votos, há uma cara e um nome que pertencem ao maior (e talvez único) vencedor de domingo: o ex-Presidente da Colômbia e atual deputado, Álvaro Uribe.

Depois de ter sido conhecido o resultado final do referendo, Uribe falou ao país. “Todos queremos a paz, ninguém quer a violência”, disse. E de seguida tratou de fazer uma crítica ao pacto, com menções implícitas ao plano de amnistia e de participação das FARC no sistema político colombiano: “Insistimos em correções [ao acordo] para que haja respeito à Constituição, e não a sua substituição. Justiça, e não a derrogação das instituições. Pluralismo político sem que este seja confundido como um prémio ao delito”.

“Todos queremos a paz, ninguém quer a violência”, garantiu, deixando um espaço aberto para novas negociações.

E agora? Paz ou guerra?

Para já, paz. E uma nova tentativa.

Depois dos resultados terem sido conhecidos, todas as partes sublinharam o seu desejo de tentar o caminho da paz. Além de Álvaro Uribe, também o Presidente, Juan Manuel Santos, reforçou esse compromisso ao mesmo tempo que aceitava o resultado do referendo. “Continuarei a procurar a paz até ao último minuto do meu mandato porque esse é o caminho para deixar um país melhor para os nossos filhos”, garantiu. Afirmações essas que tiveram eco nas declarações do líder das FARC, Timoleón Jiménez, mais conhecido por Timochenko. “As FARC-EP mantêm a sua vontade de paz e reiteram a sua disposição de usar apenas a palavra como arma de construção do futuro”, garantiu, a partir de Cuba.

Tudo indica que as duas partes vão agora voltar à mesa de negociações. O Governo ver-se-á agora obrigado a incluir algumas das exigências de Álvaro Uribe, dos uribistas e, em geral, dos partidários do “não”. Depois de vencerem o referendo, estes tratarão de fazer valer as suas exigências, sobretudo a da não-integração das FARC no sistema político, a eliminação de amnistia e indultos para os rebeldes e os seus líderes e a exclusão do narcotráfico como crime “relacionado” com a política e, assim, sujeito a um perdão.

Resta saber se, depois do desaire deste domingo, as FARC estarão dispostas a aceitar estas condições, ou parte delas. Certo é que tudo isto vai demorar o seu tempo: para chegarem ao atual pacto, foram precisos quatro anos de conversações.

Outra questão que fica pendente é saber se no caso de voltar a haver um novo acordo o povo colombiano será chamado a votá-lo. O referendo de domingo foi uma hipótese inicialmente rejeitada pelas FARC e que o Governo de Juan Manuel Santos manteve como um ponto inegociável. As FARC, enfim, acabaram por aceitá-lo. Não deixa ser irónico que tenha sido o referendo defendido pelo Presidente da Colômbia tenha representado um duro golpe na sua imagem — algo que já tinha acontecido em 2016, quando David Cameron, contra a sua vontade, conduziu o Reino Unido a um referendo que retirou o país da União Europeia.