Cara ou coroa? Nos países monárquicos, está na cara que é coroa. Nos outros, é um berbicacho. Às vezes, é mesmo uma faca de dois gumes, como no Paraguai-Colômbia de há quatro meses, para a Copa América.

Posto isto, cara ou coroa? Até 1970, altura em que o alemão Karl Wald inventa as grandes penalidades como fator de desempate nas competições europeias, essa pergunta faz-se aos capitães no início do jogo e, com um pouco de azar, também no fim. Então porquê? É sinal de empate na eliminatória. Como ainda não há penáltis para ninguém, a moeda assume uma importância extrema. Que, coincidência das coincidências, elimina sempre as equipas portuguesas. Aqui o sempre significa três vezes. Três clubes, entre Porto, Académica e Benfica.

A primeira (má) experiência é notícia há precisamente 50 anos, por ocasião de um Bordéus-Porto para a Taça das Cidades com Feira. No verão desse ano de 1966, a chegada às Antas de José Maria Pedroto, antigo capitão do clube e 17 vezes internacional pela seleção, é um estímulo para os adeptos, que o veem como o homem indicado para repor a casa em ordem.

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Na primeira época, o Porto comete a proeza de acabar o campeonato à frente do Sporting, o campeão da época anterior e o clube com mais jogadores na seleção para o Mundial de Inglaterra (oito contra sete do Benfica e três do Porto) – à sua frente, o Benfica e a sensacional Académica. Para tal, muito contribui uma espetacular segunda volta, sem qualquer derrota (nove vitórias e quatro empates), com o avançado brasileiro Djalma a marcar um terço dos 30 golos. Na Taça de Portugal, o Porto é eliminado por quem viria a arrebatar o troféu – o Vitória Setúbal, nas meias-finais (0-3 no Bonfim, com hat trick de Pedras, e 4-4 nas Antas). Na Taça das Cidades com Feira, a eliminação não é obra de Pedras, e sim de moeda, no controverso desempate de cara ou coroa.

Situemo-nos, pois, a 5 outubro 1966. O Porto está em Bordéus para a segunda mão da primeira eliminatória. Das Antas levam uma vantagem mínima de 2-1, com Pedroto a vaticinar uma vitória mais dilatada em França. Tudo leva a crer nisso quando Djalma faz o 0-1 à meia hora. Acontece que o Bordéus reage com Texier (38’) e Couécou (78’). A eliminatória está agora empatada.

Recorda-se o leitor que estamos em 1966 e a UEFA ainda não está familiarizada com o desempate por penáltis. O que está na moda é o desempate por moeda ao ar, o cara ou coroa, como se faz antes do início do jogo entre os capitães e o árbitro. Os intervenientes mantêm-se, a moeda é que assume um valor impensável. Seja um franco francês, uma peseta espanhola, uma lira italiana, um escudo português, um marco alemão, uma libra inglesa. Depende do árbitro.

No caso do Bordéus-Porto, é o italiano Agostini quem atira a lira ao ar. Ganha o Bordéus. Se o grito de revolta dos roubos de igreja (contra o Benfica) só surgiria uma década mais tarde, já aqui Pedroto se insurge contra tudo e contra todos, inclusive com a sorte ou o azar de uma moeda qualquer. “Os nossos jogadores foram verdadeiros heróis, só vencidos pelos caprichos da sorte. Além de tudo o mais, a moeda, no primeiro lançamento, ficou enterrada no terreno, com tendência para cair para o nosso lado. O árbitro voltou a lançá-la ao ar e favoreceu os franceses. Parecia malapata. O juiz não teve pulso, deveria ter expulsado vários jogadores franceses, aquilo chegou a parecer circo romano e, ainda por cima, negou-nos duas grandes penalidades sobre Djalma.” Se tivessem vencido a eliminatória, os jogadores do FCP teriam recebido três mil escudos de prémio cada um. Em moedas, certamente.

ACADÉMICA-LYON 1968

Avançamos até 1968. É a estreia europeia da Académica, na noite de 2 outubro, em Lyon, já visitada por Sporting (0-0 em 1963-64) e FC Porto (1-0 de Valdir em 1964-65). Com a Académica, a vitória sorri finalmente aos anfitriões. Golo de Guy, aos 85 minutos. Uma semana depois, a segunda mão no Calhabé, pi pi. O treinador Mário Wilson escolhe um onze com Viegas; Belo, Rui Rodrigues, Vieira Nunes e Curado; Gervásio, Vítor Campos e Rocha; Manuel António, Artur Jorge e Peres. O avançado Manuel António empata a eliminatória aos 75 minutos e, depois, o jogo arrasta-se para prolongamento e nunca mais se resolve. A alternativa de então é a moeda ao ar. Tem Mário Wilson a palavra. “Perdemos lá, num jogo em que não fiz qualquer substituição, embora a UEFA tivesse permitido em Agosto desse ano, e ganhámos em Coimbra pelo mesmo resultado: um-zero. Prolongamento e moeda ao ar. Não era inédito, mas era um momento de tensão fora do normal. Imagina os adeptos nas bancadas à espera do veredicto, não é…”

A escolha do jogador para decidir a moeda ao ar é de Wilson. “A honra do cara ou coroa recaía sobre o capitão, naturalmente, tal como na escolha do campo no início do jogo e do prolongamento. Foi o Rocha, Augusto Rocha. Nascera em Macau, mas chegou a Portugal nos anos 50 para o Sporting. Chamam-lhe o pequeno tigre, porque tigre fora a alcunha do seu pai, que partira de Alcobaça para se casar com uma chinesa. “Já tínhamos perdido a moeda ao ar nas duas vezes pela escolha do campo, mas tínhamos fé que à terceira seria de vez”, anima-se Wilson. “Mas tal não se sucedeu. O Rocha escolheu coroa e saiu cara [compasso de espera]. A cara do General Franco, porque a moeda era de um árbitro espanhol [Bueno]”, ri-se sem parar Wilson. Dois-zero para eles, os “maus”.

BENFICA-CELTIC 1969

Cara ou coroa? Huuuuum. Já lá vamos. Cinquenta mil pessoas deslocam-se ao Estádio da Luz para assistir a 90 minutos de bola e só saem de lá duas horas e meia depois. Em Glasgow, o Celtic ganhara 3-0. Na segunda mão, em Lisboa, no dia 26 novembro 1969, o inferno da Luz empurra o Benfica para uma noite histórica. Antes de Eusébio fazer o 1-0, aos 35’, já o guarda-redes John Fallon segurara um petardo do Bota de Ouro (21’) e Artur Jorge acertara em cheio no poste (19’). Ao intervalo, 2-0. É de Jaime Graça o segundo golo, aos 40’. Sai Eusébio, febril, entra Vítor Martins. O Celtic continua a defender e o Benfica à procura do golo do prolongamento. Que só chega, qual momento hitchcockiano, aos 90’+3, num cabeceamento de Diamantino.

Este lance gera muita polémica porque o árbitro apita para o final do encontro entre o canto e o golo (depende da versão portuguesa e escocesa), o que leva os adeptos benfiquistas a entrar em campo, ao mesmo tempo que os jogadores do Celtic julgam que o golo seria invalidado porque, segundo eles, o apito soara antes do remate. Com tanta confusão, o juiz holandês Laurens Van Ravens reúne as duas equipas no balneário enquanto a polícia restaura a ordem dentro do relvado. Coisa pouca, de cinco minutos.

De regresso ao campo, começa o prolongamento. Sem novidades, 3-0. Para desempatar, é mesmo necessário a moeda ao ar e Van Ravens volta a indicar o caminho do balneário aos dois capitães (Coluna e McNeill), mais os respectivos técnicos (Francisco Calado, adjunto do brasileiro Otto Glória, que não quis ver o cara ou coroa, e o lendário Jock Stein) e alguns jornalistas que se amontoavam à porta. E os presidentes? O do Celtic, chamado Robert Kelly, rejeita a sorte (ou azar) no jogo e diz de sua justiça. “Vou propor à UEFA para acabar com a moeda ao ar. Em vez disso, passa a equipa com mais cantos a favor durante o prolongamento.” Muito à frente.

Seja como for, o Benfica-Celtic é decidido por um florim holandês, moeda da nacionalidade do árbitro. Dentro da cabine, Van Ravens pergunta cara ou coroa ao visitante McNeill. “Respondi cara, depois de Stein me ter dito que eu estava por minha conta e risco”, escreve o capitão do Celtic na sua autobiografia “Hail Cesar”. “Saiu cara. Ainda estava a festejar quando Van Ravens me perguntou novamente cara ou coroa. ‘Agora foi para decidir se eras tu ou ele [Coluna] quem ia lançar. Ganhaste tu.’ Disse novamente cara e lancei. A moeda voou, bateu no chão e rolou até ao pé direito do árbitro. Aí cedeu e cara. Foi o maior alívio da minha vida.” À chegada ao hotel, em Lisboa, seis jogadores do Celtic entram nos quartos e descobrem que foram assaltados durante o jogo. McNeill é um deles. E a viagem sai-lhe cara. Outra vez.