Aveiro, ora aí está uma cidade pouco dada a jogos de qualificação para o Mundial. Até agora, só um. De extrema importância, diga-se. É o do apuramento para o Alemanha-2006. É uma noite histórica, o magro 2-1 ao Liechtenstein. Pela notícia em si e também pelo facto de Figo falhar o quarto penálti ao serviço de Portugal, o que faz dele o jogador nacional mais desastrado na linha dos 11 metros, à frente de Jordão. Numa exibição sem cabeça, Pauleta e Nuno Gomes garantem a vitória através de dois lances aéreos num jogo iniciado pelo golo de Fischer (32’), a aproveitar falha de comunicação entre Paulo Ferreira e Ricardo.
Aveiro é isto: um jogo, três golos, uma reviravolta mais um penálti falhado. Segue-se Andorra, esta sexta-feira. E, depois, Ilhas Faroé, em Toshavn, na segunda, dia 10. É mais uma jornada dupla do nosso contentamento. Contentamento? Sim, isto são seis pontos na carteira. Nem há hipótese de reconsiderar ou franzir o sobrolho. Andorra e Ilhas Faroé pertencem à 3.ª divisão europeia e só se espera a dupla vitória para afastar os fantasmas da jornada de abertura, há um mês, em Basileia (2-0 para a Suíça). E há mais jornadas do nosso contentamento?
1965, TURQUIA E CHECOSLOVÁQUIA
Muitas, a começar pela primeira (passe o pleonasmo). Estamos em 1965. No dia 19 abril, mais precisamente. É também a segunda jornada da qualificação. Para o Mundial-66. O jogo está marcado para Istambul. Quando a seleção nacional chega lá, cai o Carmo e a Trindade. Aquele relvado não tem relva, só ervas daninhas. É um pelado sem condições de um jogo internacional. A delegação portuguesa queixa-se à turca e mantém a firme posição junto da FIFA. Telegramas para aqui, telegramas para ali e o jogo é adiado por 24 horas. Em vez de Istambul, a FIFA determina Ancara, a 400 quilómetros da capital. Pronto, é a primeira vez que Portugal joga em território asiático. Quer isto dizer que os acompanhantes dos jogadores não têm lugar nem tempo para viajar de avião e ver o jogo in loco. Abandonados, por assim dizer, à sua sorte, a equipa nacional faz um resultado favorável de 1-0, à custa de um livre direto de Eusébio na segunda parte (57’).
Seis dias depois, o mesmo onze apresenta-se em Bratislava. É o 25 de Abril do futebol português, nove anos antes da revolução dos cravos. Esqueça o Portugal-Coreia do Norte de 1966 (5-3), o RFA-Portugal de 1985 (0-1), o Portugal-Inglaterra de 2000 (3-2) ou outro jogo qualquer da seleção nacional que o faça arrepiar. Não há nenhum que se compare a este. É simplesmente a exibição mais heróica de que há memória, coroada com uma brilhante vitória.
Na Checoslováquia, o relvado está enlameado e, ainda por cima, chove. A primeira parte é daqueles hinos ao futebol. Logo aos três minutos, uma entrada de Kvasnak sobre Fernando Mendes (o checo escorrega e bate na perna do médio, que só voltaria a jogar em Março 1966) reduzia para dez homens a equipa nacional, porque ainda não há substituições permitidas por lei. Por isso, o extremo-direito José Augusto ocupa o lugar do sportinguista Mendes, ao lado de Coluna. Apesar da contrariedade, Portugal não baixa os braços e dá o ar da sua graça numa soberba, magistral, fabulosa, encantadora, desconcertante, estupenda… Enfim, todos os adjetivos possíveis e imaginários são escassos para definir aqueles 8 segundos que medeiam o arranque de Eusébio desde o meio-campo até ao remate imparável, de ângulo impossível, quase na linha de fundo. É um dos golos mais incríveis do pantera negra, assim comentado por Joseph Szabo, treinador húngaro com carreira feita em Portugal e espectador atento em Bratislava: “Carago, aquilo foi um relâmpago, um raio, com ultravioletas e tudo.”
Perto do intervalo, os checos beneficiam de uma grande penalidade, por falta de Festa (o único portista no onze) sobre Kvasnak (o tal que lesionara Mendes, acidentalmente, saliente-se de novo). O estádio quase vai abaixo quando o árbitro búlgaro Atanas Stravev apitou para a marca do penálti. Após alguma confusão, porque os protestos são mais que muitos, Masny parte para a bola e atira, José Pereira finge que vai para a direita antes de se atirar para a esquerda. Que defesa. O um-zero está seguro. O intervalo viria a seguir e o segundo período, sem casos, seria de resistência. Está escrita uma das mais belas páginas do futebol nacional. A Checoslováquia, vice-campeã mundial em 1962, fora derrotada por Portugal. Se isto não é o jogo mais heróico de sempre, então…
1985, MALTA E RFA
Outra jornada dupla do nosso contentamento? Uma mais épica ainda, aquela para o Mundial-86. Com duas vitórias, sobre Malta e RFA. Primeiro é o jogo da Luz. A inépcia e distração dos malteses contagiam os portugueses e disso mesmo se dá conta no autogolo de Frederico (1-1). Sem jogar nada bem, Portugal ainda faz o 2-1. Aos 79 minutos, De Giorgio faz o empate e cai um balde de água fria sobre todos nós. E agora? Aos 82’, Litos cruza, o guarda-redes Bonello sai-se mal e Gomes aproveita a benesse para fixar o 3-2. Na conferência de imprensa, o selecionador José Torres afasta o mau presságio com uma singular declaração: “Embora só um milagre nos leve ao México, a qualificação ainda é possível matematicamente; deixem-me sonhar.” O sonho leva-nos à RFA, onde a seleção local nunca perdera em fases de apuramento, seja Europeus ou Mundiais. Até àquele 16 de outubro.
Antes do jogo, a boa notícia da vitória checoslovaca sobre os suecos. Pronto, “basta-nos” ganhar. Franz Beckenbauer deixa um aviso premonitório. “Tenho dito desde o sorteio que Portugal é o nosso maior rival, mais forte que Suécia e Checoslováquia. Gosto muito do Gomes, um avançado oportuno. Se o mantivermos longe da nossa área e sem lhe fazer faltas, estaremos bem mais tranquilos. O quarteto defensivo é ótimo. Entendem-se bem, o que é natural porque jogam juntos no mesmo clube há muito muito tempo. Claro que há problema: Bento, por exemplo, continua a revelar problemas nos cruzamentos curtos sobre a baliza. Vamos tentar tirar partido desse handicap. E ainda há Carlos Manuel. Sabe marcar os livres com colocação e força, é dos três melhores da Europa. É preciso cuidado com ele.”
Pois é. Seja de bola parada ou corrida. Aos 53 minutos, Carlos Manuel ganha um ressalto no seu meio-campo e galga terreno. Dá um passo, dois, três, quatro, cinco. Às tantas, aproxima-se da área e decide-se pelo pontapé. Será conhecido como o pontapé de Estugarda, porque a bola descreve um arco da velha e entra pela baliza dentro, lá mesmo onde a coruja dorme. Schumacher só a vê com os olhos, nem esboça uma reação. É o 1-0 definitivo, é o passe para o Mundial do México. Daí para a frente, a Alemanha só perderia mais um jogo de qualificação para o Mundial (Inglaterra, 5-1 em 2001). Está tudo dito. Ou não?
2012, RÚSSIA E IRLANDA DO NORTE
Calma, nem tudo são rosas. Porque não incluir o prefixo ‘des’ na palavra contentamento? Há duplas jornadas assim, em que nem tudo corre bem. Antes pelo contrário, dá galo. A pior de todas é aquela de 2012, a caminho do Mundial-2014. Primeiro com a Rússia, depois com a Irlanda do Norte. Em Moscovo, o selecionador Paulo Bento desenha uma equipa no quadro e aparece outra em campo. Há uma substituição de última hora, com a lesão de Raul Meireles no treino de adaptação ao sintético do Luzhniki. Oh-ho, e agora? Entra Ruben Micael para jogar com a equipa-tipo do Euro-2012. A Rússia também entra com 11, com seis ov’s, um deles é Kerzhakov, o avançado mais errático do mundo. Vá, do último Euro. Falha golos atrás de golos, de vez em quando marca um. Com Portugal, a sua folha de serviço é perfeita: um remate, um golo! Obra de Ruben Micael, que falha o passe para João Pereira e permite o tiki-taka da Rússia. Um, dois, três toques e a bola já está na meia-lua. Bruno Alves coloca Kerzhakov em jogo e este domina Rui Patrício à entrada da área. Um-zero aos seis minutos, num relvado sintético, um frio de rachar (apesar dos sete graus positivos) e a chover constantemente.
A geração Paulo Bento é pródiga em ir à luta em desvantagem. Faz parte do caráter do selecionador, clonada nos jogadores. A Rússia, a dura. Treinada por Capello, o duro. Sem saber como, ganha 1-0. Portugal, dizíamos, reage bem. Às tantas, a informação a passar no canto inferior esquerdo até nos dá a sensação de estarmos a ver o Barcelona. Posse de
bola: Rússia 36%, Portugal 64%. Bolas. É isso mesmo. Portugal instala-se no meio-campo russo. Bruno Alves é mais avançado que o próprio Postiga. Aos 12’, cabeceia ligeiramente por cima. Aos 15’, também de cabeça, obriga Akinfeev a defesa aparatosa para canto. Antes, Ronaldo dera o ar da sua graça com um remate daqueles venenosos ao primeiro poste mas do outro lado não está Valdés. Coentrão lesiona-se, é substituído por Miguel Lopes e a seleção não diminui o ritmo. Há até jogadas de ataque de Portugal iniciadas ali à entrada da área russa tal é a pressão. É o Barça, está visto. Perde-se a bola e recupera-se num abrir e fechar de olhos. O problema é a segunda parte. Capello acerta o meio-campo, Portugal perde naturalmente a dinâmica por cansaço. Já não é num abrir e fechar de olhos. Às vezes é de olhos quase fechados. Dá sono. E acaba 1-0. Tsss tsss.
Venha de lá a Irlanda do Norte para esquecer a derrota. O onze deles inclui Roy Carroll (Olympiacos); Ryan McGivern (Hibernian), Craig Cathcart (Blackpool), Johnny Evans (Manchester United), Chris Baird (Fulham), Steven Davis (Southampton), Kyle Lafferty (Sion), Corry Evans (Hull), Nial McGinn (Aberdeen), Oliver Norwood (Huddersfield) e
Aaron Hughes (Fulham). À partida (e à chegada também), o onze da Irlanda do Norte apresentado no Dragão suscita cautela mas tão só isso, nada de mais. O Fulham é o clube mais representado e até há dois jogadores da 2.ª divisão (Blackpool e Huddersfield). A isto acresce-se a falta de experiência. Dos onze (e não há mais porque a Irlanda não faz qualquer substituição!), só 16 golos. É uma seleção fraca. Ponto. E Portugal não consegue dar a volta. Pura e simplesmente, joga mal.
Cristiano Ronaldo é a figura pelos 100 internacionalizações, 45 das quais como capitão (recorde nacional, à frente de Fernando Couto e João Pinto), mas só o é antes do jogo para receber uma medalha. Durante os 90 minutos, falha dribles e até remates, como aquele depois da bola embater na trave ainda na primeira parte. É o seu jogo zero, pronto. A figura, essa, é Hélder Postiga, o bombeiro da equipa. Marca o golo do empate e aí está um jogador com amor à camisola. Número da camisola: 23. Número de golos na seleção: 23.